La Fleur Morte p.2
“Bem. Estou bem. Sem motivos para estar melhor ou pior.”
“É tão monótona, sabe?, a vida... Tão cheia de falhas, de buracos, e nós como falhas, como acaso. A saliva do deus peregrino que aconteceu de ser cheia de vida. Tudo nosso não passa de extensão daquilo que nunca deveria ser, tão sem sentido quanto todo o resto que posso ver, tocar. As palavras não deviam existir, os sons, as imagens, as roupas, não deviam existir. Tão menos a arte, tão menos a ciência, tão menos nós aqui, conversando... Sabe?
“Qual o sentido da vida? Nosso criador nunca nos deu sentido para viver. Frutos do acaso, perambulamos para lá e para cá, inventando conceitos, uma roda atrás da outra, inventando modas. Quando um morre, tem dois, três nascendo. Avanços para o geral, nunca individual, pois o que é individual importa tanto para o próximo quanto o geral para o resto do universo. Não consigo me importar com qualquer conquista humana, nenhuma delas me fascina. Estar aqui agora não conto como privilégio, mas como fado. Ter nascido vinte e três quartos anos atrás não significa nada. Podia ter nascido ontem e valeria tanto quanto o mais sujo dos mendigos, o mais cruel dos assassinos. Minha comida não é melhor do que o pão mofado, minhas atitudes não machucam menos que uma faca... Sabe?
“Doutor, tenho algo a dizer e peço que me desculpe. Mas se você morresse neste exato momento, amanhã não saberia te dizer dos outros mortos. Consciência, ciência, mortandade, mortalidade. Pulvis et umbra sumus, somos pó e sombras, foi o que Horácio declamou uma vez em suas odes. Antes de eu nascer, antes de você nascer, ou qualquer um que conheçamos, nós já sabíamos muito bem o nosso valor. Os corpos que construímos, as cicatrizes que adquirimos, os dentes que deixamos apodrecer, nada disso importa quando chega a sua vez. Todo o seu um dia se tornará pó, e todo seu eu se tornará sombra. É isso o que somos, pó e sombras, convivendo com pó e sombras, fantasmas que insistem em te acordar todas as manhãs, em sussurrar nos seus ouvidos, mesmo que escolha não escutar... Sabe?
“Neste mundo há uma certeza somente, não, duas: a de que veremos um arco-íris, e a de que vamos morrer. E eu aqui, vivendo bem, todos os dias despetalando flores sem nunca conseguir um bem-me-quer. O futuro deixa bastante claro o breu, mas meu véu é bordado de arco-íris. Por mais que transparente... Faz tempo não vejo arco-íris, sabe?, é raro dar a sorte, mas todos os dias posso ver a sombra do que eu fui, mesmo tendo em vista que ainda serei — quem sabe?
“Algum dia quero me estatelar no chão, perder mobilidade, consciência, alma. Ser como uma flor amassada, jogada de lado pelo passante. Sempre me pego pensando nisso, em como vai ser depois que eu morrer. Será que vai vir alguém me roubar do descanso prometido? Será que vou estar num vestidinho branco? Como uma margarida. Ou será lilás? Como um arbusto de lilases. Já te disse que tenho daltonismo? Já disseram que meu lilás é azul, mas não acredito. Meu lilás é lilás, como a cor do vestido em que vão me enterrar um dia. De que alguém vai limpar a terra molhada e dizer, que bonitinha ela.”
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