Rosenrot III
O e-mail chegou poucos minutos após a meia-noite:
from: damadanoite837@gmail.com
to: me
Bonjour, chéri
Creio já estar ciente de que hoje, no momento em que recebeu esta mensagem, já é o amanhã de ontem. Logo, trate de não esquecer do nosso compromisso que, gostaria de lembrar, foi confirmado por sua promessa. Espero que não tenha esquecido e não venha a esquecer até o sol aparecer.
Se estiver lendo esta mensagem, confirme para mim sua disponibilidade para as 07:30AM desta segunda-feira de nosso caro senhor jesus cristo, dia atual.
Aguardando ansiosamente a resposta,
Sua mais cara amiga,
Rosenrot.
Optei por não dar resposta. Tomei meus comprimidos, me meti entre os cobertores e desejei boa noite ao escuro.
Levantei antes do sol, ou quase, pois meu corpo pesava como tivesse um elefante nos ombros. Precisei me arrastar para fora da came e pelo chão até os sapatos de caminhada, abrindo o guarda-roupas como um aleijado para pegar um agasalho. Num esforço descomunal me ponho de pé, e vou a passos lentos e arrastados até a cafeteira. O café funciona como um elixir revitalizante, atenuando o extremo mal-estar dos calmantes e causando — como descobrindo — toda uma nova onda de energia. Olho para o relógio digital do micro-ondas, são 04:45h. Mesmos números de quando chequei 24 horas atrás, e 48 horas atrás.
Depois de duas xícaras parto para o passeio matinal, diário, repetido como sempre; mesmo céu, mesmas ruas, mesmas casas, mesmo operário sentado na calçada esperando o ônibus da fábrica, que acena para mim, passando do outro lado da rua. E assim vai aquela minha hora, hora unicamente minha em que nada mais importa além dos meus pensamentos e a manta cinza do céu encobrindo o sol que brilhará forte dali em algumas horas, mas que agora dorme como a vasta maioria da população, como as personagens ainda não descobertas escondidas por trás das janelas dos grandes prédios de três, quatro, quinze andares.
Caneca na mão, bagel entre os dentes, liguei o computador para fazer algo durante o petit-déjeuner e lá estavam quinze novos e-mails, dela mesma, agora já 06:46h. Não me preocupei em responder qualquer, e enviei num novo assunto: 08:00h.
“Você demorou,” disse ela, fazendo bico, “Pensei que tinha esquecido de mim.”
Desacreditando peguei seu pulso, o relógio Hermes mostrava 08:05h. O sorriso brincalhão apagava qualquer sinal de arrependimento.
“Aonde vamos?” Perguntei meio sem graça.
“Aonde nos levar a vida. Assim é mais emocionante, não?”
Dei de ombros e vi que minha falta de animação começou a se fazer notar. Caminhamos, ela na frente guiando, eu atrás seguindo, ouvindo o incessante discurso sobre qualquer coisa de novo para se fazer entreter.
Subimos ruas, descemos morros, passamos por bancos e praças, vendedores ambulantes e mendigos, e na frente de uma delicatessen sentimos o cheiro saboroso e quente do pão fresco, do cafézinho que ali eles coavam no filtro de pano, e sempre tinha alguém passando — o café — porque sempre tinha alguém bebendo e pedindo mais. Caminhamos pelo skate park, acenamos, demos banana, corremos para não tomar as pedras lançadas. Vitório, sentado na calçada do boteco dele, assobiou assim que viramos a esquina, gritando que o visitasse logo.
Paramos alguns quilômetros depois, olhando para cima, para o esqueleto de um prédio de apartamentos gigantesco sendo construído. Os operários, como formiguinhas, indo para lá e para cá, fazendo coisa e outra; pendurado num elevador de obras um deles descia para o andar de baixo.
“Vertigo...” sussurrou ela, de repente.
“Vertigem. Estamos no Brasil,” rebati, sem pensar.
“Vertigem...” corrigiu, e virou-se para cair em meus braços. “É. Vertigem.”
Ajudei a sentar, olhei para ela como se olha a um filhote que acabou de vomitar no carpete. Algo me dizia que eu não devia querer estar ali, e não queria mesmo. Propus,
“Que tal visitarmos o Mets? A casa dele não é muito longe daqui.”
Agora foi sua vez de olhar para mim como se olha a um filhote, um filhote que acabou de comer o último pedaço de pizza enquanto ninguém olhava.
“Eu não quero fazer isso.” Disse num tom de palavra final.
“O que quer fazer então? Tenho compromissos pra mais tarde,” menti.
Após um longo suspiro fez que ia levantar, estendi a mão para ajudar mas ignorou.
“Você tem compromissos então? Pois bem, cuide deles.”
Começou a caminhar rapidamente, as mãos nos bolsos. Reconheci minha posição e permaneci parado, olhando para ela que se afastava quase em tom de corrida. Já lá na frente parou e olhou por sobre o ombro, sacou o dedo do meio para mostrar e cuspiu no ar em minha direção. Virando as costas novamente, não continuou a andar, só ficou lá me esperando, chutando pedrinhas. Fui até ela, descansei a mão em seu ombro, vi que colocou um cigarro na boca.
“Que bicho te mordeu hoje, Jack?” Perguntou simplesmente.
“Não sei,” falei sincero. “Algo me diz que eu não devia estar sozinho com você.”
Fechou a cara e respondeu depois de um tempo, “Deve ser aquela puta da Anastasia,” se esforçando para acender o isqueiro Bic que não dava sinal de vida.
Calei, assistindo o espetáculo de sua frustração que crescia com cada tentativa falha. Cena digna de pena, risível pelo absurdo. As mãos tremiam, nervosismo puro correndo pelo corpo, beirando o pânico; lágrimas começaram a rolar e explodiu num guincho lançando o isqueiro longe. Olhou para mim como visse outro isqueiro sem gás e soltou um tapa que estalou alto no meu ouvido. Caí no chão pelo susto, ouvindo um zumbido alto, sentindo a bochecha queimar. A forma dela se erguia como uma imensa sombra, estátua contra o sol; temi o que pudesse acontecer em seguida mas me deixei atacar, vulnerável. Uma imitação de pontapé foi tudo o que conseguiu desferir. Ouvi um pedido de desculpas sussurrado, mas não pude discernir de onde vinha, os sons todos se misturavam, alguns curiosos observavam do outro lado da rua.
Tocamos a campainha da casa do Mets e Maria, a diarista, veio atender. Nós o encontramos jogando pingue-pongue contra a parede, e seu rosto se iluminou tão cedo nos viu, mas um olhar melhor fez brotar uma interrogação, na forma de uma sobrancelha arqueada, em sua testa.
“E o que é que vocês aprontaram dessa vez?” Perguntou, temendo o que fosse ouvir, mas nenhum de nós dois respondeu. Entrei na casa pela cozinha e peguei uma bolsa de gelo na geladeira, Rosenrot veio atrás e preparou dois copos de água com açúcar, sentamos no balcão.
“Desculpa...” disse em sussurro quase inaudível. Fazendo-me de difícil finjo que não ouvi, mas ela nem percebe e continua falando. “Eu... Eu não sei o que houve mais cedo. Desculpa.”
“Não importa,” respondo. “Finja que nada aconteceu. Finja que você não me esbofeteou no meio da rua. Terça-feira.”
Ela sorriu, bebericando a água com açúcar. Sorri também para acompanhar, ela notou, o sorriso se abriu ainda maior, mas seus olhos ainda carregavam uma culpa sentida verdadeiramente. De alguma forma sabíamos os dois do futuro, sentimo-nos como peças no xadrez do destino, assistindo ao exército matar e morrer movidos por uma força maior que nós todos, que nós dois. Enxerguei nela, naquele momento, o receptáculo dos mensageiros do fim, harbingers, prenunciando as trevas de um futuro próximo. Um fogo ardia dentro de si, e era fraca demais para apagá-lo.
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