Priscilla III

es-tre-las bri-lham
no céu da noi-te ne-gra
va-zi-o, não, o-co e-ter-no 

   “Pronto, sua vez,” ela diz com um sorriso no rosto.
   Penso um instante, a ideia surge: 

ru-a es-cu-ra
luz pe-la cor-ti-na do
só quar-to va-go 

   “O que será que estão aprontando naquele quarto? Já está tão tarde,” indaga Priscilla, nós dois olhando pela janela para o prédio da frente.
   Respondo 

as-sas-si-no nu
cor-ta a mo-ça em pe-
da-ços mo-lha-dos 

   Rimos, ela olha para mim em tom de desafio e diz,

ins-tin-to as-sas-
si-no, mei-a-noi-te, o-
lhan-do ví-ti-ma 

   Sombrancelha arqueada, aceito e rebato,

in-cons-ci-en-te
pre-sa ri, i-no-cen-te
do seu ver-me-lho 

   E responde,

ban-que-te san-gren-
to, mor-ci-lha de gen-te-
por-co. de-lí-cia! 

   “Bom, acho que a graça já passou,” digo.
   “Também acho, mas ainda estou curiosa a respeito daquele quarto. Não estava vago?” pergunta.
   “O porteiro ainda hoje disse que me mudasse logo para lá. Acho que ninguém reclamou o quarto não.”
   “Hum, que estranho...”
   E falou depois, sorrindo, 

mis-té-ri-o da
luz a-ce-sa tão tar-de.
a-vi-sem Poi-rot! 


   Sentados no sofá, sob cobertores, tomando chá, discutimos a possibilidade de um real crime estar acontecendo no solitário quarto iluminado.
   “Ambos conhecemos o dono, certo? Ele não tem cara de quem esquartejaria moças assim tarde da noite,” propôs.
   “Vai saber. São os bonitinhos que carregam o pior dos segredos,” desminto.
   Ela ri, cuspindo o chá quente,
   “Lembra daquele livro que te emprestei? Taylor something-well, alguma coisa sobre esse cara lourão super-esporte e machista matando a mulher para ficar com a herança? Aquele livro é tão bom.”
   “Mas o gerente parece ser uma pessoa boa de verdade, não?”
   “Ah, vai saber. Se não for ele vai ser o porteiro então. Vai ver ele quer que você more lá pra te atacar no meio da noite. Falar que foi enfarto.”
   “Oras, achei que ele gostava de cortar a gente ao meio,” falei finalmente, e o assunto morreu até a manhã. Quando íamos saindo, o porteiro nos parou para passar a fofoca. Acontece que realmente morreu alguém no prédio aquela noite. Assassinato ou não ninguém sabia ainda, mas deu polícia e até ambulância; ia aparecer no periódico da tarde. Priscilla e eu nos olhamos como fôssemos culpados das circunstâncias, demos o adeus e partimos para o café da esquina. 


   No resto do dia o sol não quis brilhar, o céu se fechou como em luto pela vida que agora sabíamos perdida. Não falamos muito também, como se nossas ideias já estivessem subentendidas e não houvesse necessidade de expressar qualquer palavra. Era estranho. Uma coincidência, com certeza, e seria irracional pensar que tínhamos mão naquele caso, mas a culpa parecia indelével, de forma que não conseguíamos dar ouvidos a razão.
   O café tinha gosto acre, os biscoitos eram secos demais, e quase nada desceu naquele petit-déjeuner. Propus sairmos numa caminhada, mas ela quis voltar para casa e fui sozinho. Cabeça cheia demais para caber qualquer pensamento, corpo pesado demais para mudar a trajetória do passo, automático, em direção a lugar nenhum. Caminhei e caminhei, as mãos no bolso, cabisbaixo, durante horas. Quando menos percebi, já estava sentado num banco de praça. Crianças brincando, o vento assobiando por entre as árvores, o bando de cachorros errantes a ladrar para fantasmas, os agapantos a florir em fileiras de arbustos aqui e ali; a vida a explodir por todos os cantos daquela praça, sob a sombra da minha ferida psique. Não gostei da alegria neutra da natureza, nem da aspereza penosa do urbano, mas não pude me importar o suficiente para levantar e sair e permaneci, respirando a imitação de ar puro, pensando na individualidade das novas vidas perdidas a cada instante.

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