Metheus IV
“E você se mata quando, Metheus?” Priscilla perguntou enquanto andávamos, subindo a ladeira, no aniversário dele.
“Quando acertarmos as minúcias de nossa paixão, querida” respondeu ele em duro sarcasmo; uma carranca como aquelas que raramente se vê em seu rosto. Mas o de Priscilla, oh, o de Priscilla não foi somente um evento raro, mas um eclipse solar com intervalo de toda uma vida. Maçãs do rosto vermelhas, ela corou. “E então? Quer se matar comigo?”
Ela nada disse, calou-se de forma que nós dois do resto esperávamos a tirada do século, mas esperamos e esperamos e ela ainda assim nada disse. Chegamos ao topo da ladeira ofegantes, reclamando, mas ela não emitia som qualquer, como em sua boca tivesse passado um zíper.
“Tá respirando? Já está tentando se matar, então?” Ele pergunta, mas a resposta é só um olhar indecifrável, para bem dentro de seus olhos, que deixa a todos desconfortáveis.
Cada um sobre seu skate, descemos a ladeira sem qualquer tráfego além dos carros estacionados no canto da rua. Chegando lá embaixo, no entanto, sou o único com um sorriso no rosto. A dopamina não tirou o amargor daquele dia para o Mets; e esta, então, nova descoberta não se deu da melhor forma para a Priscilla, e ambos ficaram lá embaixo enquanto subia sozinho para descer novamente. No entanto, meus pensamentos tinham mais do que antecipação pela descida. Pensava nos dois, tentando figurar a razão do estado de cada um. Tentando encontrar a solução de problemas inéditos. Mas nenhuma lâmpada se acendeu sobre minha cabeça, e desci a ladeira somente, e me diverti em fazê-lo.
Lá embaixo eles estavam sentados juntos. A dona do 65 soltou o cachorro na rua e aquela era nossa deixa para dar o fora. Ajudei-os a levantar, pegamos o carro e passeamos sem rumo, dirigindo por rua entre rua, subindo e descendo ladeiras, parando para uma dúzia de pessoas diferentes passarem. Mundo tão populoso esse nosso, sentia prazer em dar sinal para os pedestres, mesmo no banco do carona. De vez em quando um aceno de cabeça pra mim, um levantar de mãos para indicar o agradecimento padrão; boas maneiras do trânsito, uma sociedade feliz. Mets, deitado no banco de trás, não tinha parte em nada daquilo, preso no mundo próprio de seus pensamentos que sabíamos bem não se deve atrapalhar. Priscilla também estava aérea, a direção indo um pouco para a esquerda ou para a direita de vez em quando, beirando a calçada, o retrovisor de outros carros. Pelo menos não acelerava demais, então deixei que nos guiasse para seja lá onde sua cabeça cheia achasse melhor.
Paramos de súbito na frente de uma casa bege. O muro da frente era bege, o portão era bege, a muretinha do canteiro também, só as plantas que não, estas eram longas e espinhentas, espinhos de um dedão de tamanho, se mostrando em ameaça para seja lá quem quisesse as pequenas rosadas flores que surgiam nas pontas. Mets roncava atrás, Priscilla disse que esperasse no carro e tratasse de cuidar do meu. Saiu e foi tocar a campainha. Quem atendeu foi uma senhora que a recebeu com um abraço e um beijo em cada bochecha. Trocamos olhares, Priscilla balbuciou alguma coisa, a velhinha acenou e entrou junto com ela, batendo o portão.
Voltou dez minutos depois, trazendo consigo um embrulho que não ousei perguntar o que era. Sua mente parecia estar num lugar muito mais tranquilo agora, e falamos sobre qualquer coisa enquanto virava esquina e outra em direção a casa do Mets. No meio tempo ele acordou e, provavelmente se esquecendo de que estava triste, abriu um sorriso enorme quando nos viu.
“Quanto tempo fiquei aqui?” Perguntou.
“Trezentos anos.” Respondi.
“Quinze minutos até virar pó. Got it.”
Chegando no portão da casa, Priscilla pediu o embrulho que estava segurando para ela e disse que tinha ocupações para o resto da tarde, quase chutando a gente para fora do carro. Mal fechei a porta e arrancou a toda velocidade. Mets e eu trocamos olhares de confusão, mas só demos de ombros e entramos. No caminho até a casa peguei uma petúnia roxa e enfiei no bolso antes que alguém percebesse.
“Afinal, qual é essa aí de ficar deprimido em dia de aniversário, em?” Perguntei da mesa de pinball enquanto ele lia, deitado no sofá.
“Sei não. Só não gosto, acho.” Ele respondeu com claro enfado.
“Se a Priscilla estivesse aqui ela iria descobrir sem o menor esforço.”
“Claro que ia, psicopata como é.”
“Ela te conhece bem, não é? Vocês tem uma facilidade de se entender.”
Num suspiro de irritação, ele fechou o livro.
“É mesmo, é? Nós temos ‘facilidade’?” Perguntou sem pedir resposta.
“Acho que ela gosta de você, não acha?”
“Olha aqui,” ele se levantou, de posse duma raiva atípica que me fez estranhar a situação em que me meti, “já basta hoje ser o pior dia do ano. Não me venha com bobagens, ok?”
Assenti com a cabeça e calei por uns minutos. Voltei-me para a mesa de pinball, mas sem conseguir me concentrar na bola que pulava como de uma maneira totalmente nova e imprevisível. Mets também não conseguia mais se concentrar na leitura, e deixou o livro de canto, sentado com as mãos na cabeça, apertando para evitar que voasse para longe numa explosão.
“Eu também não sei porquê” ele disse num tom baixo, mas audível o suficiente. “Não sei porque fico assim.”
Nada disse, deixei que continuasse e descobrisse por si só.
“Nunca gostei de aniversário. Aniversário de ninguém. E nem sei porquê. Fico puto com essa coisa toda de comemorar dia de nascimento, não parece a maior bobagem?” Outra pergunta de que não esperava resposta “E sempre todo mundo dá o maior valor pra aniversário, mas nunca consigo lembrar o dia de ninguém e tem tanta gente que conheço. Odeio chegar em alguém e a pessoa falar ‘ah, tu nem lembrou do meu aniversário’, mas é claro porra, por que eu vou lembrar do aniversário de qualquer um? Lembro o nem o de mamãe!”
Levantou de abrupto, abriu a porta, chamou pra seguir ele.
“É uma droga essa coisa de aniversário. Todo dia é de alguém, toda hora alguém nasce no mundo, todo segundo pertenceu — ou pertence — a alguém que viveu em alguma parte da história humana. Não existe um momento nos 365 dias do ano que seja livre do obrigatório parabéns,” ele disserta enquanto caminhamos pelo jardim e através do portão da frente. Descemos a rua, ele num passo apressado de quem não percebe, eu preparado pra pará-lo caso passe um carro. “Você passa de frente àquelas lojas de artigos de festa, tantas dessas que existem em qualquer cidade, e sabe por que não faliram ainda? Porque sempre há festas acontecendo, aniversários, bodas, chás de bebê, chás de casa, e conhecidos esperam que a gente saiba de tudo isso? Omnisciência se reserva a deuses somente, mas é gente que quer que a gente saiba de tudo!”
Não minto, aquela raiva toda desconsertada dele por conta de algo aparentemente tão banal me dava risos, mas abafei todos por respeito a sua confissão. Num momento de silêncio, perguntei:
“Você não tem como dizer parabéns a todos, não é uma dona-de-casa suburbana, mas qual o problema nisso?”
“Você não entende? Eu preciso ser capaz disso, adoro aniversários. Eu não gosto de não lembrar do aniversário de alguém, ninguém gosta de não ser lembrado. Eu não gosto de não ser lembrado.”
O sinal de alerta foi instantâneo. Não fazia ideia sequer de que ele fazia aniversário naquele dia.
“Você nunca me disse a data do seu aniversário” comentei.
“Não?”
“Não. E pelo jeito que estava mais cedo, pensei que não quisesse um parabéns.”
Seu rosto se transformou num arrependimento sentido, olhou em volta e só então percebeu o quão longe estávamos da casa. Mas não disse nada, só sentou ali no chão mesmo, as costas de encosto ao muro da casa de alguém, se grudando a ele pelo suor. Sentei ao seu lado e batemos papo vendo os carros passar ao longe na avenida a algumas quadras de distância.
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