Rosenrot II

    “When the wooden planks warm up to the warmth of your body, what other freshness can be found in the hot summer day, that will help you ignore your own existence?”, ela recitou do guardanapo. “E então, o que acha?”
   “O chão frio ajuda a esquecer de si mesma?”, pergunto depois de um tempo.
   “Mais do que um picolé ou um copo d’água, ou a brisa de um bom ventilador.”
   “Sabe o que ajuda a esquecer de si mesma? Ar-condicionados.”
   “Faz sentido”, responde após curtos segundos de reflexão. “Mas a verdade é que qualquer método de se refrescar num dia quente de verão vai te fazer lembrar de seus problemas. Até o ar-condicionado vai deixar seus lábios secos em algum momento. O ponto é que não há maneira de se esquecer por muito tempo, por conta de suas necessidades, e num dia quente de verão esse problema é bastante notável. A fresquidão do chão gelado é tão findável quanto qualquer outra ‘solução’ em que se possa por as mãos. Rimou.”
   Aquilo me fez refletir um momento mais. Olhei para ela que não queria atrapalhar, rabiscando versos em mais folhas de guardanapos.
   “Verdade. É um placebo a tal solução, qualquer tipo de solução”, respondo finalmente. “No entanto, existem problemas exoráveis?”
   “Uma dor de dente?”
   “Dor de dente vem, normalmente, por conta de pobre higiene bocal. Você vai no dentista, ele conserta, você volta pra casa começa a escovar direito. Depois de um mês você esquece que higiene bocal existe, começa a escovar menos, passa outro mês a dor volta, dessa vez em outro dente. Outro cenário, você vai no dentista, precisa de um preenchimento, ele o faz. Passam dois, três meses, a massinha cai, você precisa de mais um. Outro cenário. Seu wisdom tooth está nascendo, a dor não para, você vai no dentista ele diz que precisa remover, você remove, ainda tem três pra nascer, cada um um problema diferente. Você envelhece, os dentes caem, precisa colocar novos, você coloca novos, e agora? Problemas e problemas para resolver por conta dos dentes novos. A dor de dente não é um problema principal, é parte do problema. O problema de ter dentes é inexorável, todo mundo precisa de dentes. A necessidade de dentes é um problema inexorável também.”
   “Então...”, ela pensa bem antes de falar. “Não existe problema algum que tenha uma solução resoluta, algo que anule o problema, porque todo problema é parte de um problema maior. É isso?”
   “É. Mas tenho certeza de que isso é um bom exercício mental, não é? Pensar em problemas com soluções que não são parte de problemas com soluções (ad infinitum), parte de um problema sem solução.”
   “Certo,” diz sem olhar para mim, manejando a manta de guardanapos rabiscados com versos, para escolher um. “Que tal esse aqui: ‘A falha do concreto é uma falha no concreto [work in progress]’.”
   “A falha do concreto é uma falha no concreto...”, penso um pouco, repetindo o verso na cabeça. “A falha no concreto é uma falha do concreto, da vida útil e da quebra do que já foi certo, mas tão indefeso à força do tempo quanto eu”, aponto para mim e depois para ela, “e você.”
   “Uau. Poesia é estúpido.”
   “Também odeio esse tal de poesia.”
   E ela bebe um gole do drink gelado naquele dia quente de verão, que encharca alguns dos guardanapos que pousa o copo sobre. Guardanapos com versos que não poderei nunca guardar nem na cabeça, nem no caderno de anotações sempre a meu lado. Versos mortos, nunca recitados, sejam bons ou ruins. Versos inexistentes hoje e amanhã, e naquela tarde de tantos anos atrás após colocar o copo gelado e suado sobre os guardanapos que chuparam-lhe o líquido todo de por fora. Guardanapo que se encharcou, guardanapo mártir, guardanapo feliz — pronto para morrer. E ela olhou para mim, naquele dia quente de verão, dentro do café recentemente inaugurado. Ela olhou para mim, não sorriu, eu sorri, mas ela não sorriu porque percebeu que perdeu os versos que escreveu naquele dia quente de verão, por um descuido.

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