Priscilla II

    "Ela é um supermercado. Experienciá-la é como fazê-lo a um supermercado. O ar congelante do AC, os milhares de produtos diferentes, a resposta para todos os problemas, mas mais ainda, o terror da modernidade corporativa, fria e dura como mármore", foi o que pensei enquanto balançava seus A cups para um detector de fumaça.
   — Não é engraçado que alguém se excite pela mera visão de imagens em movimento presas a uma tela? — Ela perguntou.
   — Ainda é uma evolução. Houve uma época em que o homem tinha nada além de um cartão-postal pornô por toda a vida, Respondi.
   — Vamos mostrar para o eles do que a modernidade é feita. Tire as roupas.
   — Acho que só você já está bom. Você e a superfície plana que chama de peito.
   — Você nunca reclamou da minha superfície plana. Talvez seja mesmo o suficiente, — Abaixa a camisa. — Ou será que ele prefere peitões?
   — Quem disse que é "ele"? Talvez seja uma senhora.
   — Uma senhora já teria vindo me parar.
   — Um detector de fumaça não dá a ela muita informação, — Olha para mim com grande confusão. — Acho melhor você não dirigir. 

   Saímos do mercado com um pote de cogumelos shitake sob o casaco. Ninguém estava nos caixas, ninguém varria o chão, ninguém vigiava os corredores, e sequer precisamos correr para manter o fruto do roubo. Priscilla estava bêbada demais para se lembrar da advertência e dirigiu mesmo assim, silenciosamente, enquanto comíamos cogumelos. Noite fria aquela, beirava já as 03:00AM e não se via sequer uma alma penada vagando pelas ruas.
   — Será que tenho alergia a cogumelos? — Pergunta. — Meu pescoço está coçando.
   — Talvez. Pare o carro, — Respondo.
   Na rua sem movimento ela olhava para o céu enquanto sua pele ia de um lívido rosa para um escuro vermelho.
   — Você está respirando?
   — Sim.
   — Então não vou te levar para o hospital.
   — Obrigado. 

   O sol despontava já no horizonte da cidade alta, e ela se parecia, a cada minuto que passava, mais e mais como uma almôndega.
   — E agora? Está morrendo?
   — Não.
   — Então não vou te levar para o hospital.
   — Obrigado. 

   E passou uma pessoa, e depois três carros, mas ninguém perguntou se a garota vermelha morria. E não morreu mesmo, só desmaiou recostada no poste.
   — Você morreu?
   Sem resposta.
   — Você não morreu.
   Joguei o corpo no banco de trás e partimos em direção ao apartamento. No caminho, porém, nos parou uma viatura. Policial conhecido nosso, viu o carro de longe e quis dar um alô.
   — Vai ser quando o funeral? Vou passar lá pra jogar umas flores no caixão, — Perguntou o policial.
   — Vai ver não somos nós a jogar farinha no teu túmulo, — Rebati.
   — Vai ver não sou eu colocando uma multa nesse para-brisa se não me passar esses cogumelos aí.
   Relutante dei os cogumelos, ciclo da vida, mas cuspi na viatura ao passar e recebi de bom grado o dedo-do-meio do desgraçado. 

   — Estive mesmo tão bêbada que deixei você dirigir meu carro? — Pergunta, enrolada numa coberta sobre o sofá como fosse um animal-de-estimação.
   — Gostou do rolo? Vou chamar de “rolo inverno”, — Digo enquanto troco as toalhas úmidas.
   — Você não precisava fazer isso tudo, — Fala baixinho ao notar o petit-déjeuner na mesa-de-café.
   — Eu sei. Você não merece.
   — Não mesmo.
   Perco as palavras por algum motivo.
   — O que aconteceu com os cogumelos? — Pergunta.
   — O policial teu amigo confiscou.
   — O Júnior?
   — Eu lá vou saber o nome dele.
   — Deve ser o Júnior. Eu vendo receitas pra ele.
   — Claro. Corrupção é subproduto do poder.
   — Fuck the police.
   — Fuck the police... 

   O café cheirava bem, e os raios de luz vindos da janela deixavam ver o vapor e a coleção de móveis usados adquiridos no decorrer dos anos; tudo à meia-luz, limpo e cheirando a novo, diversificado por existências individuais, uma coleção de coleções.
   — O que quer escutar? — Perguntei me dirigindo a estante com nossa coleção de música.
   — Cardillo, — Responde mastigando como se comesse pela primeira vez em dias.
   O ininteligível espanhol do disco mal gravado ecoou pela casa, familiar, vivo. Fui à janela e olhei a vida correr lá fora. Plantas. Bichos. Cheiros. Roupas. Olhos. Braços. Seios. Bocas. Vidraça verde jasmim no prédio do outro lado da rua; a única vidraça verde jasmim em meio a uma dúzia de vidraças não-verde jasmim. Vi o céu também, olhando para cima, límpido e azul, nada como o manto negro que me acostumei a associar com Priscilla. 

   — Vamos assar um bolo, — Disse ela, do sofá.
   — Nada de rum, então.
   — Nada de rum.

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