O Inconsciente — ou, le temps detruit tout

   O dia tinha começado tão bem...
   Estava imensamente preocupada devido a minhas ocupações, estava cansada e queria morrer simplesmente. Mas sabe aquele momento especial que, ainda que curto, muda totalmente o seu estado de espírito? Pois é, veio cedo desta vez. Levantei da cama após dormir alguns minutos, e não podia ter um melhor “push” para iniciar o dia. Ela me desejava uma ótima e produtiva manhã. O café não podia ter melhor gosto, e o cheiro de tinta e papel não podia trazer melhores recordações. Eu estava legitimamente feliz. Tudo ia às mil maravilhas. E então começou. Caminhei por alguns quilômetros, resolvi negócios, passei muito tempo na fila do correio, e não podia estar mais cansada como naquele momento em que sentei à minha mesa favorita, em minha cafeteria favorita, e pedi o “de sempre”. A cabeça a ponto de explodir, cada milímetro do meu corpo em um estado anormal de relaxamento; sentia como se estivesse passando por um AVC — há mais de trinta minutos. O café chegou, puxei um livro de dentro da mochila, morri.
   Quando acordei já estava tomando soro na veia, e a enfermeira perguntava se eu queria que ligasse para alguém. O mundo ao redor parecia um pouco distante, como se acabasse de acordar de um sonho profundo e, de toda sorte, estava em um sonho profundo e pedi para que pegasse um lápis e algum papel, e comecei a escrever. De repente, o dia mudou de forma. Eu estava no hospital e a enfermeira não parava com seu sermão sobre o pecado na auto-flagelação, e falava alto da feiura das minhas cicatrizes e pedia o número de minha mãe e era muita informação, mas mal conseguia dar atenção a qualquer coisa que não o bloco de notas nas minhas mãos. Eu tinha uma história, a crônica de um fato que nunca ocorreu mas que precisava botar para fora; uma experiência traumatizante, triste, que me despertou de um estado absorto. Olhei em volta. Tudo era muito claro. Algumas outras pessoas estavam também por ali, mas a senhora de cento e vinte quilos, com um vestido branco que claramente era justo demais para seu tamanho, parecia dar atenção especial para mim.
   Decidi ligar para mamãe, às vezes ela se importa. Mas não dessa vez. “Pessoas desmaiam o tempo todo. Não vou parar o que estou fazendo para ir até a merda do hospital!” Nunca a tinha visto desmaiar. Os gritos do outro lado da linha me deixaram pior do que já estava. Pensei em ligar para Miluje, mas não queria preocupá-la com uma bobeira; “pessoas desmaiam o tempo todo”. Mas de toda forma, não podia sair sozinha dali, alguém devia vir a meu socorro. Liguei para a Priscilla, pedi para que a enfermeira dissesse que estava à beira da morte, e que precisava correr para dar o último adeus. Ela veio. Entrou na sala chorando, e me abraçou forte quando viu que não estava estraçalhada numa maca. Sua feição era uma mistura de alívio e desespero, felicidade e cólera, e após o abraço vieram uns tapinhas; pediu para que não fizesse isso de novo. Saímos do hospital e fomos para uma praça qualquer. Tinha acabo o dia de estudos dela, então a tarde estava livre, podíamos fazer o que quiséssemos, qualquer coisa, mas apenas conversamos. Colocamos o papo em dia. 

   Priscilla é um membro antigo do pessoal, e também um dos poucos reminiscentes. Hoje em dia estão mortos ou fora de alcance, pouquíssimos ainda estão aqui e os dias de sua presença estão contados. No início do próximo ano Priscilla irá para a Universidade do Texas conseguir seu doutorado em psicologia. E vai ficar por lá. É o sonho dela, realmente quer fazer isso, então a deixarei ir. É por uma boa causa, todos foram, mas sentirei saudades, muitas saudades.

   Para fechar a tarde resolvemos ir a nossa delicatessen favorita, que também é uma padaria. Nos sentamos na mesa de sempre, pedimos os croissants para a velhinha de sempre, agradecemos como sempre e voltamos a conversar, comendo o pão e tomando um café grego. Lá para 2012 ou 2013, o Mets descobriu que adorava croissant, e em todas as vezes que escolhia onde comeríamos nos levava à essa delicatessen. A dona e única garçonete é uma velhinha de uns oitenta anos, mas bem enxuta, que parece ter sobrevivido às intempéries do tempo. Nenhum de nós gostava de croissant, mas o Mets ficava tão feliz em estar ali, compartilhando sua coisa favorita com seus melhores amigos, que aprendemos a gostar, por ele. E toda a semana que vinha, nos reuníamos no mesmo estabelecimento, e pedíamos a mesma coisa, e ficávamos lá por horas jogando conversa fora. Mesmo a parte do pessoal que precisava cumprir horários, passava lá por alguns minutinhos para dizer um “oi” e comer seu croissant.
   Com o passar dos anos eu os vi desaparecer um por um. Primeiro foi o próprio Mets, com a sua doença que o tirou do mundo. E então Anastasia, Carlos, Marcos, Luna, todos eles. Hoje em dia estamos aqui somente Priscilla e eu. Mesmo que ela ainda odeie croissant, continua cumprindo com a tradição, tal eu, em memória de nosso melhor amigo. Mas em breve estará livre disso.
   Por que é tão difícil escrever sobre esses momentos realmente felizes? Por que a nostalgia é tão boa e tão ruim ao mesmo tempo? Estou com um sorriso enorme no rosto, mas um rio de lágrimas corre pela minha face. No fim das contas, o tempo passa e leva tudo com ele. Não acho que a pobre velhinha estará viva até o final do ano. Ela faz cada um dos pãozinhos, que estão sempre frescos, um por um, com as próprias mãos; e quando se for este lugar nunca mais será o mesmo. Mesmo que as coisas pareçam ir bem, o tempo, inexoravelmente, destruirá tudo. 

   E fui pra casa. Não voltei para o trabalho, para as ocupações. Coloquei comida para minha gata, troquei sua água e areia; liguei a cafeteira, e tomei um expresso. Sentei-me com uma folha na mão, e estou escrevendo este texto. É estranho como a vida dá ótimos textos para o escritor mesmo que não peça por eles; mesmo que não os agrade.

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