Metheus

    Mudar-se para uma cidade nova sempre será uma experiência ruim, ainda mais quando se é uma criança; ainda mais quando a cidade tem 3ºC a mais do que se está acostumado; ainda mais quando está cheia de pessoas de uma raça que nunca viu antes; ainda mais quando se perde três meses de vida vegetando sobre uma cama numa depressão profunda por ter sua vida virada ao avesso. Era eu naquela cama, sem qualquer linha de pensamento, vendo minha mãe chorar sentada logo ao lado por seu único filho ter se tornado uma estátua-viva. Mas nada do que foi tentado me tirou daquele estado senão meu próprio corpo, quando voltei a pensar, ver, falar. Voltei à vida tão de repente e sem aviso como quando bati o ponto para sair de férias.
   O trauma mexeu bastante comigo e precisei de terapia para voltar a andar normalmente, falar normalmente, e um time de psicólogos passou a me atormentar seis dias por semana. Drogado em todas as horas do dia, perdido na vida, lendo e relendo o mesmo livro e zanzando pela casa com um caderno na mão escrevendo um romance que nunca acabava, vivi enfurnado naquele lugar, ocasionalmente pegando um táxi direto para o escritório daqueles parasitas.
   Eventualmente mamãe quis reconstruir minha vida social, já que as duas outras pessoas que conversavam comigo estavam a sete palmos do chão, e enlouquecia com meus diálogos pessimistas. Seus contatos com a alta sociedade ajudaram bastante, pois logo me tornei uma diversão da hora do chá, recitando poesias que ninguém entendia e tocando pianos desafinados a que todos aplaudiam. Sentia-me tão macaco quanto os pobres animais nos ombros das crianças, mas era claro meu propósito ali; mamãe se divertia à beça naquele meio a que não pertencia, e me vi fazendo aquilo por ela, como meu presente por todos os anos que jogou fora por minha causa. Mas ainda assim, eu era jovem demais para morrer no circo e aquilo tinha de parar; e meu herói veio ao resgate.

   Metheus tinha o pior nome possível para alguém de sua idade, e foi ridicularizado em todas as escolas em que estudou, por mais que fosse uma das raras pessoas realmente boas que tive o prazer de conhecer. Ele podia fazer amizade com qualquer ser, humano ou animal, construindo um imenso batalhão de contatos disposto a dedicar-lhe a vida. Aonde quer que fosse voltava contando sobre quem conheceu no lugar, e as montanhas de pessoas previamente conhecidas que o saudaram no caminho. Passear com ele era como fazê-lo com o presidente dos EUA, sempre acenando ou apertando a mão de alguém.
   Ele me encontrou no jardim da própria casa, metendo flores pelos bolsos.
   “O que está fazendo aí, moço?” Perguntou mais num tom de curiosidade que repreensão. Não respondi, só pus as mãos nas costas e o olhei nos olhos, sem expressão; minha velha tática de fingir surdez. Com um sorriso divertido ergueu a mão direita procurando a minha, o que me fez refletir por um instante, perdido no modo de proceder. Existem diferentes formas de se apertar mãos, que variam com gênero, idade, contexto; enfim, tudo aquilo que devia ter aprendido nas quatro semanas do curso de etiqueta de que fui expulso por “não cooperar”. Não sabia apertar aquela mão, então fui pelo clássico que aprendi no DVD de marketing pessoal, tentando passar a firmeza que faltava no contato, com o olhar.
   “Você está querendo um emprego aqui, por acaso? Está apertando minha mão como se eu fosse importante!”
   Com aquela fala ele me quebrou por dentro, e depois daquele momento nunca mais cometi o erro de estar despreparado para um aperto de mãos. Corando até a raiz dos cabelos, implorei para que me desculpasse, o que só instigou uma gargalhada e fez do meu rosto um refletor de luz rubra nunca antes vista. Desarmado e profundamente apavorado, virei as costas e corri o mais que pude, me esforçando muito para conter as lágrimas que já me embaçavam a visão, mas tropeço numa mangueira solta e caio como um saco de batatas, desolado e sem força alguma para continuar correndo. Metheus agachou-se e afagou meus cabelos, tendo cortado caminho por dentro da casa e vindo pela porta lateral. Olhando para cima, vi seu rosto escurecido pelos raios de sol que formavam um lindo padrão por através das gotas lacrimais. Parecia um anjo com aquele cabelo encaracolado e loiro.
   “Meu nome é Metheus, mas prefiro que me chamem de Mets” Disse estendendo a mão ajudadora, que aceitei. “Você deve ser ‘Jack, o Pianista’ pelo que mamãe me disse.” E aqui cometeu a um gesto que até aquele ponto de minha vida esteve presente pouquíssimas vezes e em podres memórias: um abraço. Ele me abraçou como vovô me abraçava antes de minha vida ser arruinada por minha primeira palavra. Ele me abraçou como minha segunda pessoa favorita me abraçava antes de me forçar a fazer coisas que não queria. Ele me abraçou como minha mãe o fazia raramente com a licença de vovó, ou escondido enquanto a matriarca dormia; um abraço de conforto, daqueles que mudam sua vida pelas semanas seguintes.
   “Mets e Jack, seremos uma rentável dupla sertaneja com esses nomes.” E aquela risada mudou de algo especificamente assustador, para meu som favorito, e que viria a ouvir muito pois logo nos tornaríamos melhores amigos.

Comments

Popular posts from this blog

an "ode" to all my friends

THE LOST TAPES Vol.45: death and danger

THE LOST TAPES Vol.10