Metheus II
Agora finalmente tinha um amigo, Mets, que substituiu mamãe no dever de melhorar minha vida social. Antes de chegar, sua melhor amiga era outra, e após falar de mim para ela fui convidado a participar da comemoração de fim-de-temporada dos esportes casuais, para que nos encontrássemos. A festa estava acontecendo no quintal de uma propriedade no fim do mundo, e quando cheguei o Mets já estava lá para me receber. Vestindo uma camiseta com a capa do Metal Up Your Ass tão longa que parecia um vestido, e sapatos Converse nunca lavados, os olhares de julgamento pesaram, vindos da multidão de camisas Ralph Lauren, e juro que teria morrido ali mesmo se o Mets não estivesse rindo incessantemente desde que me viu.
“Você realmente não sabe se vestir” Diz ele entre gargalhadas, me arrastando para dentro da casa. “É um punkzinho de merda, como nunca duvidei?” Meu rosto mostrava claro desapontamento enquanto esperava, de braços cruzados, que a maquilagem de palhaço escorresse do meu rosto, e depois de alguns longos minutos, com os olhos cheios de lágrimas, finalmente se recompôs e disse o que faríamos.
“Tem uma pessoa que quer te conhecer, Jack, uma amiga minha que deve estar escondida em algum lugar desta casa.”
Curioso pedi mais informações, e ele apenas diz querer manter a surpresa. Saímos pela casa a procurando, e me surpreendo com o tamanho imenso daquele lugar. Como entramos por uma das portas laterais, demo-nos na segunda cozinha, a menor delas, e não esperava logo depois ver uma sala-de-estar do tamanho da minha casa, e menos ainda subir as escadas e ver um segundo cômodo do mesmo tamanho. A primeira ronda foi como correr a São Silvestre, e mesmo cansadíssimos após trinta minutos de procura, a garota estava em lugar nenhum para ser vista, o que deu a ela qualidade de tesouro. Só depois de outra meia-hora a encontramos; sua posição se notando por uma poça de Bourbon no chão de um dos quartos de hóspedes. Havia se escondido debaixo da cama e caído no sono, derrubado a garrafa, e cutucamos e chamamos seu nome mas mais parecia um cadáver.
“Pega as pernas que eu pego os braços”, pôs o Mets em chamada e conseguimos jogá-la em cima da cama, fedendo a álcool e suor.
“Mas que bela surpresa essa, né?” Disse eu com um sorrisinho maldito.
“Agradeço as condolências, Jack. Sei que o pesar no seu coração é indelével.”
“Pesa tanto que morrerei na próxima hora.”
E diz então com visível dúvida. “Como é que se acorda um bêbado?”
“Na base da porrada?” Replico como piada, mas ele a dá um tapa fortíssimo com um estalo que ecoa pelo quarto; mas ela não se mexe.
“Acho que isso só funciona se tiver a ponto de matar”, diz olhando para mim com a cara mais limpa. “Ativa o alarme do corpo.”
“Se algum dia eu estiver em coma e você me der um tapa desses, juro que volto dos mortos e arranco sua jugular”, digo mal acreditando na cena que acabara de presenciar.
“Ela parece morta, né?” Cutuca a cabeça da garota, que balança com o movimento. “Vamos jogar ela da janela.”
“Vamos jogar ela debaixo do chuveiro, isso sim.”
Meu plano funciona, e como acordando de um sonho sob a torrente de água fria, ela diz baboseiras que não fazem sentido algum e o Mets parte para encontrar toalhas e roupa nova. Dou uns tapinhas na bochecha que não está vermelha, tentando chamar sua atenção, e olha para mim dizendo metade de um “quem diabos é você?” antes de vomitar na minha camiseta de lona de circo.
Priscilla o nome dela e, parafraseando, “me chama de Pri e te dou um tiro”; o que era verdade, pois o Mets, desavisado, tomou vinte e três tiros de airsoft por chamá-la de Pri vinte e três vezes quando primeiro a conheceu.
A hora seguinte ao incidente do vômito foi cheia de eventos. Bebi álcool que não vinho pela primeira vez, tive um pedaço da minha pele arrancada como marcação de território, matei um rato, e por fim sentava no banco de passageiro de um carro dirigido por uma pessoa alcoolizada.
“Para onde?” Perguntou a motorista, tocando um chapéu imaginário para imitar um taxista americano.
“Para qualquer lugar que não essa porcaria de festa”, respondeu Mets com um ensaiado enfado, e o carro arrancou rápido demais cidade adentro.
Bruscamente Priscilla freou o carro de frente a uma cafeteria de ar elegante, e a seguimos para dentro até uma mesa de bancos acolchoados perto da janela.
“Já veio aqui, pinhead?” Perguntou Priscilla sem esperar resposta “Eles têm a melhor torta de limão que você vai comer.”
“Não saio muito de casa, não conheço este lugar”, tento responder, mas sou cortado por ela que me explica minha própria situação.
“O Metheus já disse tudo. Mas não precisa se preocupar, metaleiro. Vou arrancar sua depressão pela boca. É essa minha função na sociedade.”
Surpreso com a descoberta de que falavam de mim pelas costas, sorrio para ela cordial, imaginando como aquela aparente sociopata poderia me ajudar com algo assim.
Nossos pedidos chegaram e era verdade, aquela torta de limão estava divina, a própria definição de umami. O café não era mau também, mas naquela época ainda desconhecia as maravilhas do expresso, e dizia que coar o café você mesmo numa meia era infinitamente melhor. Meu gosto por bebidas no geral amadureceu e expandiu muito com o passar dos anos, devido a essas novas amizades que me entupiam de tudo o que havia do bom e do melhor.
Enquanto discutiam avidamente sobre qualquer coisa, tirei um minuto para apreciar aquele cenário. Como minha vida mudou tanto e tão rápido, como os personagens de minha história eram repostos pelo Destino; como se podia, já agora, traçar paralelos entre minha realidade e uma ficção rentável de uma editora meia-boca; e me perdia na imaginação do futuro próximo em que aqueles dois estariam presentes. Ele, com sua felicidade e humor sem iguais; ela, com sua fala pausada e bem pensada e o desgosto pelo mundo a sua volta; totais opostos, com certeza, mas que se encaixavam tão bem em si e eu com eles, minhas duas novas pessoas favoritas, me arrastando para uma cafeteria vazia num domingo, comprando fatias de torta que custavam o triplo do que valiam, e bebendo um café com gosto de metal que, eu não sabia, eles não sabiam, fazia girar a roda de minha vida novamente, iniciar um novo capítulo daquilo que pensei ter perdido já, e dar novo sentido à minha existência.
Absorto e envolvido numa sensação deliciosa de profunda satisfação, mal percebo que Mets tentava chamar minha atenção, cutucando meu braço para me perguntar o que achava.
“O que acho do quê?”
“Da ideia perturbadora da Priscilla sobre a razão na filosofia do anticristo. Tá dormindo acordado, cara?”
“Eu só estudei Sartre até hoje, não sei o que é a filosofia do anticristo.”
Priscilla num olhar incrédulo segurou a risada por um segundo antes de explodir batendo o punho na mesa, e Metheus pediu que repetisse o que havia dito, antes de também ele gargalhar como fosse eu um bobo da corte. Estranhando aquilo tudo, perguntei o que havia de errado com Sartre, mas ambos só me ignoraram e voltaram à discussão de antes.
***
No topo do prédio mais alto da cidade nos deitamos, sentindo o cheiro da noite. Ouvindo o barulho longínquo dos carros lá embaixo que insistiam em não parar, que insistiam em fazer barulho e se misturar ao som da música de uma banda que tocava à quilômetros dali e fazia seu som ecoar por toda a cidade. Eu ouvia a respiração dos dois, um de cada lado, enquanto relembrava nosso programa do dia. Seus altos e baixos, suas alegrias e dores; o quadro de uma memória multicor em que predominavam os amarelos, os beges e os brancos. Queria que não acabasse, queria levá-los para casa como souvenirs, mas sabia lá no fundo que assim já estava perfeito.
“Se divertiu hoje, metaleiro?” Pergunta Priscilla.
“Yessir. Foi ótimo te conhecer.”
“Eu sei que foi. Eu sou demais.” Falou num tom brincalhão, levantando e estendendo ambas as mãos para nos ajudar.
De volta ao carro nos dirigimos ao ponto de partida, onde encontrei mamãe chorando inconsolavelmente no balcão da cozinha. Olhou para mim passando na porta como tivesse ocorrido um milagre, e correu para me abraçar e beijar como fosse um adeus.
Aquela foi a primeira vez em toda a minha vida que me vi separado dela por mais de algumas horas e, surpreendentemente, não poderia me sentir melhor. Gostei de estar fora de casa, gostei de estar fora da proteção de mamãe e, pior ainda, gostei de deixá-la preocupada; um prazer culpado que desejei repetir, mas nada disse e me deixei ser abraçado. Nada disse do que fiz, nada disse do que vi, nada disse do que disse. Calei-me sobre minhas aventuras, aprendi a mentir, e mamãe compreendeu tristemente que já não era mais minha única amiga, que agora eu tinha opções.
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