La Fleur Morte p.1

    Desde pequeno adorei flores. De todos os tipos e todas as cores. Minha flor era uma bela margarida num vasinho na janela, a qual regava todos os dias. Todos os dias sentia a mesma fragrância suave e a maciez de suas pétalas. Seu tempo de vida foram dois meses de primavera; o caule no lixo e as pétalas secando sobre a escrivaninha, onde as podia ver. Em menos de uma semana estavam secas e frágeis. O branco dando lugar a um seco marrom com cheiro de nada; lindas como nunca antes. Despetalar flores tornou-se um hobby, e logo vieram outras. Tulipas, rosas, petúnias. A floricultura como um açougue; a carne, a arte, o desejo pela falha da vida. As sementes e o fazer viver; quanto mais tempo aguardasse melhor a sensação no assassínio. O vaso um leito, onde se nascia e onde se morria; a velha escrivaninha de carvalho escuro a mesa mortuária, as flores o experimento. Qual tipo o mais resistente? Qual o mais cheiroso? Quais as melhores texturas? De flor em flor, de pergunta em pergunta, dúzias morriam ano após ano, até que o ciclo se tornou tão fastidioso quanto a mera apreciação da flor na janela. Queria mais que só aquilo, ansiava por algo diferente; e o encontrei nas coleções. Não parei de matar, mas comecei a coletar souvenirs. De todas as pétalas prensava duas em finos discos de vinil, e as colocava num baúzinho trancado à chave. Todas as noites antes de dormir, abria o baú e tocava os discos, imaginando a maciez das flores presas no tempo. Com uma lágrima escorrendo pela bochecha pedia perdão, e tomava o silêncio como um sim. Deitava com um sorriso no rosto, e sonhava com a próxima visita à floricultura.
   A vida eventualmente me separou do baú e desse excêntrico passado. Meu gosto pela beleza das flores se manteve, mas percebi na adolescência que a beleza da forma não se restringia somente às flores, e passei a ver flores por todos os lados. Flores nas ruas, na biblioteca, no ônibus; flores nas cafeterias e exposições de arte; flores nas festas e concertos e nos bares, rubras ou pálidas, vomitando na calçada; flores no chão e flores no céu, e em meio às centenas de milhares de irmãs, uma ou duas flores nas árvores. A beleza deixou de ser razão e se tornou potencial. A beleza logo não era mais um caule, pétalas e talvez alguns espinhos. A beleza tornou-se omniforme, deusa-beleza, deusa-flor, musa sem rosto e multifacetada. A beleza era tudo, presente em tudo mas em níveis diferentes; poucos objetos sendo reais detentores do belo, mas a beleza existia já onde quer que olhasse. As escamas caíram dos meus olhos, e não deleite, mas sim curiosidade preencheu meu coração. Pus-me em busca de flores e as encontrei. Muitas foram minhas, outras não me compreenderam. De experimento em experimento as conclusões só traziam mais perguntas, e logo apenas olhar e cutucar por detrás do vidro pareceu pouco demais. Precisava ir mais longe, precisava saber os limites da beleza, e nenhuma de minhas flores conseguiram me dar o que queria. Não demorou, voltei à estaca zero. Buscava respostas hipotéticas, mas minha sina era clara. Cada dia passado sem a experiência da máxima beleza tornava-me mais lívido, mais ansioso, mais sedento, e descobri por fim que precisava eu mesmo empunhar do pincel e ser artista, expressar-me, mostrar a mim e ao mundo que o belo está aqui [aponte ao coração] em sua forma maior, que somos todos botões, mas para que desabroche a rosa é necessário auxílio.
   Numa noite cheia de estrelas me pus ao ato. Vi o potencial no rosto de uma clara flor caminhando sozinha pela rua escura. Tapei-lhe a boca com a mão esquerda, enquanto o braço direito a sufocava. Aguardei até que se acalmasse e relaxasse o corpo; arrastei-a para o beco e observei meu canvas. Abri o botão com meu pincel, e a rosa escapou de sua prisão: roxa, marrom, branca, mas principalmente vermelha. A rosa floresceu e se espalhou, líquida, tornando rubro a tudo em seu curso.
   Cortei o caule, arranquei as pétalas; uma mecha de cabelo guardei para prensar mais tarde.

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