Rosenrot
Entro no banco para o exercício mensal do pagamento de contas, mecanicamente, perdido em meus pensamentos. Uma voz familiar indaga, levanto os olhos e não acredito na minha sorte. Rosenrot à minha frente. O nervosismo a fazendo morder o lábio inferior, eu tão surpreso quanto é possível num momento destes. Não dizemos nada, perdidos nos olhos um do outro. As lembranças de um passado de terror e intrigas, apagadas pelo tempo e que ressurgem de seus vestígios como uma atemorizadora onda e nos encharca. Ela está linda como sempre foi; a forma a que sempre me senti atraído. Sabe de sua própria beleza e porta roupas leves que deixam ver a alvura da pele nua. As ancas largas e a altura a fazem parecer uma amazona, e é isto o que é, uma Vênus amazona, Calíope guerreira que mata com graça. Podem-se ver as veias azuladas na pele exposta, junto a um curto pontilhado de sardas. As madeixas finas e rubras; agulhas que perfuram minha alma com a lembrança de quando as experienciei pela primeira vez. O cheiro doce da macadâmia, sua marca registrada, preenchendo cada centímetro daquele ambiente, tornando ela em sua perfeição uma forma de Praxiteles, o centro das atenções, o centro da minha atenção, perdido como nunca antes em sua beleza, um simples marinheiro afundando no oceano.
Imagino o que passava por sua cabeça ali naquele momento, enquanto mordia seus lábios cheios e rosa, as presas longas aparecendo, alvas, como ameaça. Imagino o que pensava quando não tirou os grandes olhos castanho-escuros dos meus. Aqueles olhos que sempre temi, agora sob a iluminação fosforescente, tornando mais escuras as pupilas. Outra súcubo na minha vida, outro inimigo, uma ameaça que pensei não existir mais e que estava ali na minha frente, como igual, tal qual naquela noite que corrompeu nossa amizade para sempre.
Sempre admirei seu ar de liderança, sua argúcia, sua capacidade de se meter em problemas. Sempre admirei sua vida boêmia de menina rica, e as festas semanais que duravam dias. Sempre admirei como se mantinha esperta como um gato depois de entornar uma garrafa de vinho fino. Adorava ver sua transa com senhores importantes de meia-idade, que pagavam para trair suas esposas com as adolescentes bêbadas que sempre apareciam nas festas; depois notar sua excitação ao contar a história. A rainha do crime que se apaixonou pelo médico do feudo, disposta a arruinar-lhe a vida pela consumação de seus desejos. Traiçoeira víbora que desconhece os limites do próprio poder. Ser tão superior em minha concepção e que agora está aqui, à minha frente, como igual.
Após esses poucos segundos de troca de olhares, baixo os olhos novamente. Não quero aparentar reconhecê-la, não quero responder a pergunta feita de que nós dois bem sabemos a resposta. Eu estou aqui e ela também está, e tão pouca coisa mudou em nós depois de quase uma década. Sinto-me como estivesse lá atrás, quando tudo estava bem. Ela é o portal para um tempo que me esforço para esquecer. Sinto as lágrimas minarem dos meus olhos semicerrados, e corro. Quero fugir. Escondo o rosto com as mãos, não consigo enxergar e não me importo. Corro sem me preocupar com o trânsito, os muros, os viandantes. Choro desesperado e sem saber porquê, tentando me concentrar no som da sola de borracha pisando forte o asfalto e afastar aquelas memórias todas que vinham numa enxurrada. Uma mão me toca o ombro e segura meu braço, fazendo parar. Gostaria de não saber quem era, mas o cheiro da macadâmia não mente no ombro em que choro, no abraço em que me conforto. Sinto seu corpo tremer; estamos sentindo a mesma dor. Nós dois sabemos como é difícil. Compartilhamos o infortúnio de nos encontrar, e aquele abraço nos torna um só corpo, uma só mente, uma só existência.
Meus soluços param e posso me afastar para vê-la novamente. Preencho a palma das minhas mãos com seu rosto úmido e vermelho das lágrimas que tanto tentou segurar e não conseguiu. Vejo novamente seus olhos, o nariz, a boca, cada centímetro do mais belo estudo divino.
Seu olhar me pergunta sem palavras: “E agora?”
Não respondo. Não sei responder.
***
“Estou tricurioso! O que está escrito aí nesse teu livro?” Pergunta Mets, levantando um pouco da cadeira com cada palavra. As mãos grudadas na mesa erguendo o corpo ávido pela satisfação da curiosidade.
“Nem adianta, moço. Você não entenderia.” Diz Rosenrot num tom de deboche fingido, gostando da atenção recebida.
Rio da situação com Anastasia, imaginando como seria a família dos dois se inventassem de se casar. “Eu pago uma rodada pra todo mundo se me deixar ver o que tem no livro!” Fala alto para todos na cafeteria ouvirem, por mais que fôssemos os únicos ali. Com um sorriso sarcástico ela entrega o pequeno volume de couro envelhecido, carcomido por traças. Mets abre como fosse o livro da vida, e Rosenrot gargalha do seu largo sorriso que diminui com a decepção.
Antes dele era eu a única outra pessoa a ver o interior daquele livro que ela nunca largava, e não confiava nas mãos de ninguém: uma tradução independente para o russo de “Les Fleurs du Mal”, que data do fim do século XIX. Encontrou-o num sebo qualquer quando criança, e o deram de graça devido ao estado ilegível da maior parte do livro. Rosenrot nunca se preocupou em aprender russo, e entendia daqueles símbolos tanto quanto a pessoa ao lado, mas passava horas e horas folheando, suspirando. Aquele livro era seu melhor amigo, mas nem ela sabia o porquê ou como. Talvez fosse um placebo que a vida aprontou para sua infância ruim. Talvez fosse um passatempo que acumulou significado demais através dos anos. Talvez fosse um instrumento do destino para nos colocar naquela situação do café, e fazer o Mets perder 100 pratas com uma rodada de cappuccinos doces demais para ter qualidade.
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