Priscilla

      Ela me liga no meio da noite chamando para um programa com o Mets, e aceito num piscar de olhos. Vem me pegar de carona mas não passamos na casa de mais ninguém. Em vez disso dirigimos em silêncio, faróis apagados, sem outro carro ou pessoa nas ruas, só nós, e depois de quase uma hora ela diz algo.
     “É lindo, não? Pessoas são o recurso principal na construção de cidades, mas é tão mais bonito sem elas”, fala quase para si mesma, sem tirar os olhos da estrada. “Dirigir a esta hora é como caminhar num museu vazio. Nada de artistas, guardas, visitantes; o único ruído sendo seus próprios passos. Você pode apreciar o trabalho da humanidade sem o fardo da própria humanidade.” Não respondo, mas consinto. Coloco a cabeça para fora da janela e sinto a brisa. Os postes de iluminação indo e vindo num padrão estrito; os prédios, lares, com pessoas dentro, agora somente um elemento daquele quadro. Ela põe uma fita para tocar, Bohren, meu favorito, e percebo ali seu intento. Naquele momento éramos nós os heróis a que os hinos foram dedicados. Bohren tocava a trilha sonora para aquela específica cena, tornando-nos personagens e a realidade uma obra-de-arte. Ela sabia disso e queria que sentisse o mesmo.
      “Oizys,” disse enfim, “ensinando à criação o sentido de sua existência.” 

***

      Nós paramos numa loja de conveniência para comprar algum lanche e encher o tanque do carro. O caixa estava alto e o cheiro de maconha impregnara o ar. O troco veio com cem pratas extra, que ele chamou de sua “boa ação do dia”. Priscilla pegou o dinheiro e correu para o carro, ignorando os gritos do pobre coitado pedindo que devolvesse, após a realização súbita do que fez.
     “Entra na porra do carro, maricas!” Ela grita para mim, prestes a dar para o cara cem do meu próprio bolso.
     Aquele foi o maior dilema da noite: “Consertar o karma desse estranho e perder uma amiga, ou ser amigo de uma ladra que literalmente me sequestrou?” Venci meu dilema desejando a ele boa sorte e pulando para dentro do carro que arrancou veloz, pela avenida. Nós continuamos naquela velocidade até notar uma viatura meia-milha à frente, dar meia volta e fugir na contramão, queimando borracha com um sorriso no rosto.
     “Quer ir para algum lugar em específico?” Perguntou.
     “Gostaria de comida de verdade para o jantar”, respondi com a boca cheia de amendoim japonês.

***

     Ela nos levou para um prédio tão sujo e velho quanto qualquer outro naquele bairro, tocou a campainha, o portão abriu, mas ao invés de subirmos os degraus, descemos. Era um restaurante japonês subterrâneo, repleto de pessoas conversando numa língua estranha. O lugar inteiro cheirava a álcool, suor e molho de soja, e todos pareciam felizes e espertos naquelas 03:00h da manhã de um domingo. As mesas todas estavam ocupadas e os garçons iam de um lado a outro levando comida e cerveja. Haviam alguns bancos livres no balcão e sentamos lá. A atendente falou com a Priscilla como fossem amigas de muito; uma senhora de idade vestindo um kimono encharcado de suor. Ela pediu o de sempre para nós: uma tigela de ramen que cheirava a picles e tinha gosto de água do mar. Decepcionante de cara, considerando que ela disse que iria “explodir minhas papilas gustativas para fora da língua”. Na verdade, ela estava gostando do prato tanto quanto qualquer outro ali; era eu a ovelha branca no negro ovil. Mas depois de um tempo, a comida à minha frente tornou-se deliciosa e pedi bis depois de lamber o prato, ansioso enquanto preparavam, como um viciado que acabasse de descobrir o paraíso no ópio, e teria comido até explodir não fosse a Priscilla me arrastando para fora, gritando boa noite para todos.
     Parecia uma bola quando entrei no carro. “Você se aproveitou lá dentro, né?” Imaginando se deveria responder ou se ela só estava sendo sarcástica, concordei com a cabeça. Seu sorriso mostrou que estava feliz com aquilo. “Este é meu restaurante favorito e venho sempre que estou cansada de ficar sozinha. Aquelas pessoas bebem com qualquer um que também colocar uma moeda na mesa.” Parou por um instante para rir de uma lembrança. “Uma comunidade rara de homens-coruja que só saem à noite. E agora é minha vez de escolher o destino.” 

***

     Nós finalmente começamos a conversar sobre gostos em comum, e de pouquinho em pouquinho desenvolvemos a base para uma amizade que dura até hoje. Ambos adoramos literatura francesa, música experimental e supermercados e lâmpadas fosforescentes, e conversar com ela é como discutir comigo mesmo, por quão parecidos somos. Encontrei nela uma companheira de verdade, alguém para levar comigo para o resto da vida, e eventualmente descobri que pensava o mesmo de mim.
     O carro parou na periferia da cidade. Ela abriu o porta-malas e tirou de lá uma caixa térmica com garrafas de cerveja quente nadando nos restos mortais de cubos de gelo há muito esquecidos. Nós pulamos a cerca que dava para um largo pasto cheio de gado. Sentamos na grama alta escutando o silêncio rural, bebendo, e assistindo as vacas dormindo. Alguns grilos faziam seu cri-cri e os vaga-lumes se misturavam às estrelas do céu, e a brisa noturna acarinhava nossas faces. Agradeci pela aventura e fez um gesto com a garrafa, satisfeita. Sem dizer mais nada a partir dali, esperamos o sol surgir, bebericando a cerveja barata e espantando os pernilongos. 

08/21

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