Exercício em criação de personagem e crônica

[PT only]

    Estes são alguns experimentos em improviso e crônica, inspirado nos trabalhos de Rogério Menezes para o Correio Braziliense.

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   Rogério, 37, é morador de bairro pobre nos confins da cidade. Pega ônibus todo dia para trabalhar no quiosque que a prefeita deu. De noite trabalha como guarda noturno. Toda quarta se senta num boteco qualquer e bebe até apagar; dia de folga, mas teme parar em casa. Teme ver o filho doente sobre a cama, e a esposa de rosto como que congelado numa única expressão de angústia —sofredora estátua de sal do dedicado Lot—, assentada assim todos os dias ao lado do menino rosa, em carne viva.
   Rogério não sabe do futuro, não quer saber do futuro, e afoga as mágoas em infindáveis horas de trabalho para se sentir útil, sentir-se capaz de influenciar a vida de qualquer um, mesmo que da menor forma possível[...]

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   O aniversário de Lúcia, 33, é em uma semana. Os colegas de trabalho perguntaram o que queria de presente, qual sabor de bolo gosta, a cor favorita, para encomendar os balões —coisa chique, cheios com hélio, ideia do chefe—, mas Lúcia, 33, disse que não fizesse festa, pois ia tirar as férias mais cedo para visitar os pais em Porto Alegre. Quem gostava dela ainda disse que daria uma lembrancinha para aproveitar a data. Quem não gostava deu de ombros: ia comparecer só para comer do bolo mesmo.
   O problema, no entanto, é que os pais de Lúcia ela nunca conheceu. Foi de orfanato pra emprego de escritório e para morar sozinha de aluguel em kitchenette nos fundos da casa do dono. Sovina, preferia não “se dar ao luxo” de viajar para Porto Alegre, e muito menos encomendar balões de hélio pra fazer aniversário sozinha. Não faria bolo, só cozinhava o básico e não gostava. Nem forno seu fogão tinha. Também não conhecia vizinho, não tinha amigo pra convidar, não ia a lugar nenhum que não para o trabalho e de volta pra casa. Lúcia não tinha o que fazer dali em uma semana, no dia de seu aniversário, e também não queria fazer qualquer coisa.
   A verdade é que Lúcia não gosta de ninguém, nem de si mesma. Todo sábado em divã de analista, pago pelo governo, não melhora nunca. Desgostosa de tudo, deprimida, depressiva, quer morrer desde que se entende por gente, mas ainda não morreu, e nem vai morrer tão cedo. Vai viver ainda anos e anos, indo de emprego em emprego, escritório em escritório, cubículo atrás de cubículo, fingindo que é de família grande, que gosta de filme francês e confeitaria. Utilizando-se da experiência adquirida antes do pé-na-bunda, para provar, na próxima empreitada, àqueles que a deram chance, que o inimigo mora logo ao lado. 

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   Maria do Carmo, 52, é descendente de índio e advogada de pequenas causas em tribunal corrupto de cidade pequena. Durante a pandemia, e após mais de vinte anos exercendo a profissão, se deu conta da insignificância no valor de sua função: Vestia-se bem, de terninho preto e ruge completo toda manhã, três banhos por dia, e sempre usando colônia importada —mandava encerar o Ford prata toda semana também—, gastava uma fortuna só para chegar no tribunal e defender a rede nacional contra a mulher do pobre coitado, morto por infecção intestinal ao comer cogumelos vendidos fora do prazo de validade. No entanto, estar ali ou não não fazia diferença. A causa, do juiz aos herdeiros, já estava comprada nos bastidores e o resultado era certo, comparecendo todos ali só para tornar as coisas oficiais; e era assim toda semana, figurantes, num teatro formal de ser ou não ser, cansativo e repetitivo. Não um tabuleiro de xadrez, mas de damas, em que as vermelhas são predominantes.
   Queria tanto, tentara tanto, fazendo de seus dias esta aventura em mentiras, imaginativa, de querer aquilo que não é. Mas agora com o advento do tribunal online, passando todos os dias da semana em seu robe-de-chambre, sempre com uma taça de vinho branco na mão, passou a enxergar todo o escopo da coisa, em epifania. Passou a compreender a vida como ela é, jogando fora sua dedicação de advogada séria para responder e-mails e resolver casos ainda menores em casa, pelo computador.
   Olhou-se no espelho certa vez e disse: “Este ano eu não piso mais naquele tribunal”, e não pisou mesmo. Permaneceu em casa no outro ano também. Já metade deste e comprou um robe ainda mais caro, e garrafas de vinho ainda maiores. Em novembro, finalmente pedirá a aposentadoria, e viverá o resto de sua vida tão bem quanto há poucos anos passou a viver. 

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   Pablo, 40, sentou-se hoje ao lado de garota skinhead no ônibus R19 de caminho à rodoviária. A música pelos fones de ouvido ressonava por todo o lugar, e era ainda mais alta ali, bem ao lado da garota careca que claramente se deleitava com toda a atenção atraída a si.
   Ele se importava com o barulho, mas decidiu por não dizer nada, tentando se acostumar ao caos recente encontrado ali dentro, tão surpreendentemente diferente do das ruas principais no centro da cidade naquela hora do rush, de onde acabava de escapar.
   O costume de deixar as pernas cruzadas sempre o agoniava quando dentro do ônibus; nunca tendo espaço suficiente para manejar todos os seus mais de dois metros, acabando por ficar em estado de tormenta crescente durante toda a viagem; mas agora nem se lembrava deste problema, focado em manter os joelhos juntos, afastando-se ao máximo da garota que mantia as pernas abertas como um homem mal-educado. Ela se esforçando para irritá-lo, lentamente invadia seu espaço, abrindo cada vez mais as pernas.
   Metade do caminho, estava a ponto de desistir. Olhava para o lado, para o olhar repleto de ódio vidrado nele, para o sorriso diabólico de quem se acha superior; olhava para baixo, para a mão preta de completamente tatuada, para o joelho esquerdo que insistia em encostar mais e mais em sua perna; pensava, ou melhor, tentava pensar no que achava daquilo tudo, mas encontrava apenas o ruído da música dentro de sua mente. Todo o seu corpo tremia em pura agonia e frustração, e os passageiros que estavam de pé assistiam à cena disfarçados, mas curiosos. “O que será que ele vai fazer?” pensavam, olhando para aquele homem miserável, pelo canto do olho.
   Pablo, então, decidiu que fugiria dali. Pediu licença para quem estava no caminho, deu o sinal, desceu na parada e foi andando o resto do caminho pra casa.

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