Crianças de condomínio

[Essa versão está bastante datada (11/23) e permanece aqui somente para arquivo. O trabalho foi reescrito e virá de conjunto um novo projeto.]

   Foi bom ser criança de condomínio,
   Por mais que nunca tenha morado em um,
   Vivendo em bairro pobre ou suburbano
   Sempre há quilômetros de distância de tudo. 

   Meus amigos também não moravam em condomínio
   Mas eram todos eles ricos
   — como crianças de condomínio —
   Esbanjando dos sonhos dos outros
   E da falta de limites duma rebeldia infundada. 

   Qualquer um dirigia naquela época,
   Mesmo menor de idade,
   Os carros dados de presente com antecedência,
   E levava a turma toda pra uma noite de terror,
   E não nosso terror, mas dos outros. 

   Pulávamos muros, pisávamos grama fresca,
   Roubávamos flores, cartas,
   Quebrávamos janelas, bebíamos até apagar.
   Quebrávamos garrafas também
   Em gente que não tinha nada a ver. 

   Uma vez importamos uns shapes da Element
   Que foram largados uma semana depois.
   Outra vez apareceu um com um carro usado
   Que ateamos fogo fora da cidade,
   Só pra voltar andando pra casa. 

   Amiga nossa tinha um sistema de som Phillips
   De antes de qualquer um de nós nascer
   E que podia tocar qualquer vinil
   Com qualidade impecável.
   14 anos e mais de mil discos. 

   Nós nos reuníamos todos os dias numa delicatessen
   Que servia croissants feitos à mão por uma senhora
   Que nunca foi com nossa cara, mas que nós amávamos,
   E sustentávamos sozinhos aquele ponto deserto.

   Toda árvore que aparecia em nossa frente era vítima,
   E gravávamos nossos nomes, às vezes o de outros,
   Colocando sempre a data errada
   Esperando que ninguém percebesse no futuro.
   “Gautier était ici, 1999” 

   Uns colecionavam facas, outros, tomos,
   Tinha um que comprava dentes,
   Outro, pornografia; uma, guitarras Gibson.
   O de que ninguém gostava colecionava fotografias:
   Montanhas de Polaroids com nossos delitos. 

   Nos envolvíamos sempre com a escória,
   Traficantes, prostitutas, ocultistas.
   E éramos também escória,
   Comercializando pornografia,
   Matando gatinhos. 

   Tinha gente que gostava de dor, vivia machucada.
   Tinha gente que gostava de nus, sempre pelada.
   Tinha gente que gostava de animais, coberta de pêlos.
   Tinha gente que gostava de sangue, nunca sã.
   E tinha outros que só assistiam, sempre. 

   Quando nos reuníamos para fazer show
   Vandalizávamos o lugar, éramos banidos,
   Fugíamos pra qualquer garagem e eu gritava,
   Gritava e gritava até não ter mais voz,
   Até uma corda arrebentar, até a bateria furar. 

   Estávamos sempre furiosos, às vezes calmos,
   Sempre deprimidos, às vezes felizes,
   Sempre brigando, às vezes não,
   Mas sempre juntos, sempre sofrendo juntos
   Sem motivos para sofrer. 

   Um dia viajamos para uma cidade pequena.
   Invadimos casas, quebramos carros,
   Bebendo e vomitando e repetindo o ciclo;
   Eu fodi uma árvore, quebrei um dente;
   E nos escondemos da polícia até amanhecer. 

   Se alguém ficava doente, todos ficavam.
   Se alguém ia a um show, todos iam.
   Se alguém comprava um CD, todos ouviam.
   E assim seguia a vida, nós todos enraizados,
   Interconectados como fungos, em comunidade. 

   Mas eles eram todos ricos, eu não.
   Para eles nada tinha importância, mas para mim tinha.
   Enquanto eles tinham crédito eu tinha lápis e papel.
   Era escriba, historiadora, observadora-participante.
   E eram eles todos meus personagens,
[e eu também personagem. 

   Eu vivia um romance, uma coleção de crônicas,
   Sempre inspirada, sempre com muito a contar,
   Mas muito menos humana que qualquer mendigo.
   Minha sujeira era pior que a de todos eles,
   Pois também as carregava. 

   Como crianças de condomínio, oblívias ao resto,
[ignorantes talvez,
   Vivíamos como monarquia sem aceitar essa condição.
   Rebelamos, protestamos, mas nunca nos abandonamos.
   Nunca abandonamos o figurado condomínio,
   Pois o poço nunca teve fundo.

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