THE LOST TAPES Vol.23: Brasil
[PT only]
O casal desce da moto. A mulher retira o capacete para revelar um largo sorriso estampado no rosto. Tal o homem, mas o sorriso dele tem um quê de algo a mais: está para fazer uma piada,
— Está pronta para fazer a feira, minha esposa? — Pergunta.
— Ah, se estou, meu marido. Olha só esse mercadão! — Ela responde.
— Mas essa é, assim, a feira do ano, viu? — Ele conta, rindo alto. — Depois dessa aqui nenhuma mais.
Ela ri também, pra acompanhar, mas um pouco sem graça.
Eles entram e saem do mercado em menos de dez minutos, nenhuma sacola em mãos, e silenciosamente colocam os capacetes e sobem na moto que parte com um ronco.
***
A voz exaltada voava para fora da casa pelo portão aberto, e vinha chegar em mim do outro lado da rua, cheia de uma fúria que parecia palpável.
— 30 segundos só! — Disse a voz — Foi 30 segundos. A polícia virou, fez o retorno ali em cima, e pipocou os caras na bala. Foi coisa de nem ligar a sirene, PLÁ!, PLÁ!, PLÁ!. Morreu todos três como fosse nada. Trinta segundos só que levou. Eles não ligam pra gente não, nós somos a mesma coisa que ratos pros filhos da puta. Quem morreu lá não foi nem maloqueiro, mané. Foi gente direita, moleque estudante, indo pro baile no domingo. Virou crime ir pro baile agora? Responde, porra! É crime ir pro baile?
***
Lá vem chuva
O céu bem escuro pela noite
E todo cheio de nuvenzinhas carmesim
Espelhadas pra lá e pra cá que nem leite cortado
Mas dava pra sentir
Pelo cheiro sei bem; pelo vento forte levantando o poeirão
Que esse algodão todo vai acumular
E fazer chover nessa terra batida
Água como vida, pingo dedo de Deus
Fazendo surgir todo esse mundo novo nas margens da cidade
Aqui onde asfalto não tem, só gente, muita gente
Descalço, menino só de bermuda
Menina de vestidinho de fazenda barata
O menino raspou a cabeça
A menina tem os cabelos todos assanhados, todos selvagens
E os dois pulam no rio de lama que se fez surgir, como uma veia, descendo o morro todo de ladeiras
Rio de lama em que corre a sujeira daquele lugar
Mas só em parte, tudo não
Levando o lixo que foi jogado ao léu na mata alta dos terrenos baldios
De forma que até caixa de pizza congelada se pode encontrar, deslizando
Mas esse lixo não desaparece para sempre não, que nem mágica
Vai desembocar lá no baixão, onde fica a nascente que cospe piche
Lixão improvisado por Mãe Natureza
Podre, radioativo talvez, pobre
Mas não é ruim a chuva não
Lembra que, há uma semana daqui, as ervas daninhas estarão mais verdes que a esperança
E as flores que as acompanham abrirão os botões para serem apreciadas
Mesmo minimamente
Mesmo por gente simples
Gente descendo o morro para pegar o ônibus pra fábrica.
***
O que é subúrbio nessa cidade, se quase toda a arquitetura popular se fez a mesma com o tempo?
É subúrbio a cidade inteira,
Ou é subúrbio aquelas cinquenta casinhas coloridas, quase kitchenettes, no fim da cidade, que o governo mandou construir para as mais de 150 famílias desabrigadas por conta dessa nova onda de desemprego?
O que é subúrbio se quando não se é pobre é rico?
Se quando não é casinha é mansão?
Classe-média fantasma,
Fantasmagórica
(fantasiosa talvez?).
Que só existe por lenda,
na boca do pobre.
Que só existe por piada,
na boca do rico.
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