Untitled 03

 I

   Numa noite de quarta-feira, cansada, saindo do centro hospitalar e de uma seção de psicanálise, atravesso a rua para a praça escura. A prefeitura da cidade pequena não se importa o suficiente para mandar um ou dois homens para trocar as lâmpadas dos postes que os delinquentes quebraram há um mês atrás, e aquele se torna o ponto mais acessível para ver as estrelas. Sento no meu banco de sempre e olho para cima. Vejo meus finados todos lá, na negritude do espaço, e conto para eles como foi meu dia; ora ou outra o discurso cortado pelos barulhentos ônibus cobertos de poeira. Eles me escutam e respondem no seu código morse que nunca me importei em aprender, até que canso e deixo que falem sozinhos. O dia é o único que consegue calar seu assunto incessante e silencioso.
   O tempo passou rápido. Mamãe ligando para saber onde estou, mas não quero responder. Deixo vibrar no bolso o celular, agora deitada no banco duro e desconfortável. Bem longe escuto um choro. Penso vir de um dos prédios ao redor mas todas as luzes estão acesas pelas cortinas e ninguém chora sob a vista de Deus. Olho ao redor mas é quase impossível discernir qualquer forma naquela escuridão. Levanto curiosa à procura do animal ferido, mas meus passos o assustam e se cala. Tropeço algumas vezes até me lembrar que há uma lanterna embutida no celular, e não demora até encontrar a fonte do ruído. Uma garota de meu tamanho soluça abraçando os joelhos, encostada em uma das árvores. Busca ignorar minha presença ali, mesmo com a luz forte no rosto, mesmo com meu olhar fixo questionando sua existência e sua posição. Sento ao seu lado depois de um tempo, compadecida.
   “Está vendo aquela estrela ali, ao lado de Sirius? É vovô.” Ela não olha para onde aponto, tendo o rosto ainda enterrado nos braços. “Ele falou bastante comigo hoje, mas não entendi nada. Engraçado como os mortos nunca falam coisa com coisa, não é?”
   Minha tentativa de puxar conversa começa uma nova onda de soluços, e a culpa me faz querer correr dali, mas mantenho minha posição e espero que se acalme novamente.
   “Quer um abraço?” Sem esperar resposta passo meu braço por seus ombros, e não encontro resistência. Está fria como um cadáver, portando só um vestidinho de malha, então a puxo mais para perto me esforçando ao máximo para não me importar com o catarro escorrendo no meu moletom. Quando por fim me abraça de volta, é como um urso não tendo noção de sua própria força e me cortando em duas partes.
   Eventualmente o aperto afrouxa e me olha nos olhos. Enxergo só o reflexo da lua nas lágrimas ainda minando.
   “Prazer, Annie” Digo esperando a resposta que não vem. “Você não é muito de falar, né?”   

   Pouco ouvi dela naquela noite além do choro e algumas respostas gagas que mal-mal entendi, mas que foram o suficiente para levá-la de volta ao ninho de onde pulou, para a mãe que me agradeceu com os olhos inchados e chamou para um café aceito de muito boa vontade.
   A mãe não tinha tão menos problemas se comparado a filha, e desinibida chorou na minha frente tentando tagarelar mais alto que os gemidos abafados da garota no quarto ao lado. Acabadas algumas canecas, fiz que ia embora mas não permitiu, ignorando completamente as rondas policiais e o táxi 24hrs, insistindo que passasse a noite por lá ao invés de correr perigo na noite. Não reclamei, procrastinando a explicação que teria de dar ao chegar em casa, e dormi como um anjo num sofá feito de nuvens.

II

   Voltando à praça no dia seguinte, dessa vez com horário marcado, comparar a garota que encontrei ali com o bolo grudento, frio e mudo da noite passada, é uma diferença de dia e noite. Estava muito mais falante, muito mais quente, com um vestido amarelo cheirando à verão. Hoje ela se mostrou estonteante. Entusiasta de artes visuais, compartilhamos nossos posicionamentos e encontramos um saco cheio de gostos em comum, indo de Bouguereau à De Lempicka, de Cronenberg à Laugier. Conversamos até o sol desaparecer e a lua cheia mostrar um terço seu por entre os prédios.
   A hora de ir embora chegou como num piscar de olhos, tão rápido como seu humor mudou ao ver a mãe juntar-se a nós no banco. O papo continuou somente entre a mãe e eu, com a garota visivelmente desconfortável, sem responder a qualquer de nossas tentativas de colocá-la na conversa. Não demorou até que levantasse e saísse correndo. A mãe me parou no impulso de ir atrás, agarrando meu pulso com força.
   “Deixe-a ir, querida. Ela sempre volta” diz num tom tristonho, quase de choro. Viro para olhá-la e vejo a abundância de lágrimas que começam a saltar. E por fim, me diz num sussurro. “Por favor, deixe-a ir.”
   Confortei-a como fiz com sua filha; ouvindo suas explicações em meio a engasgos, insistindo em deitar a cabeça no meu colo.   

   Sendo mãe solteira e viúva antes dos trinta, vivendo mais por seu trabalho do que por sua cria, sem nunca ter tempo de  ou não saber  conciliar a ambos para que tenham importância igual, está sempre viajando sem criar raízes ou pertencer a lugar algum, arrastando consigo a garota presa à mãe e ao autodidatismo. Sem amigos, sem família, arrancada do lar; tudo provisório numa vida agitada que a vem corroendo desde que perdeu o pai, e a mãe se tornou uma ambulante lutando em nome da liberação feminina. Mas ela me promete que fixarão residência aqui, que as coisas vão mudar para melhor e que é só questão de tempo até que tudo se normalize, e acredito nela, acredito que não aguentará muito mais tempo com uma bomba-relógio dormindo ao lado. Acredito que por fim abrirá mão de sua liberdade pelo bem daquela que ajudou a colocar no mundo.

   A vida corre bem naquele ano. Sinto-me o terceiro membro da família mais disfuncional possível, praticamente vivendo com elas. Visitamos cinemas e restaurantes, passamos horas e horas lendo nas livrarias e saindo sem pagar. Quando chegava a noite, a mãe preparava um programa que sempre acabava com nós três enroscadas num cobertor no sofá, assistindo um filme qualquer. Ela era sempre a primeira a dormir, acompanhada pela filha que parecia adorar babar em mim, pois o fazia todas as vezes. Quando esquecia meu remédio, não dormia, ouvia o ressonar das duas por horas a fio, até que a luz do sol surgisse pelos buracos da cortina e me fizesse ciente também da minha existência. O barulho do primeiro ônibus do dia era o sinal de que logo cairia no sono, e assim o fazia, sendo acordada pouco tempo mais tarde, tachada de dorminhoca.

   Quando pensei estar tão fundo no poço que não havia forma de escape, uma corda caiu e me bateu na cabeça. Juntas construímos uma ponte que nos ajudou a atravessar um mar de desesperança que de pouco em pouco subia a maré e nos ameaçava engolfar. Perseveramos, enfim. Encontramos a zona segura. Imaginávamos o futuro como seria, planejando uma vida impraticável que todas sabíamos não passar de um sonho, mas que nunca interrompeu nossa felicidade.

III

  Com o tempo foi inevitável e elas viajaram mais uma vez para outro lugar. Ali no aeroporto senti um gosto horrível de que nunca irei me esquecer. Sempre dói quando alguém querido morre, mas há certo conforto naquilo, sabe? Você sabe que é natural, sabe que algum dia vai ter de acontecer não importa o valor de quem se foi. No entanto, nada é mais doloroso do que se despedir de alguém e saber que ainda está por aí no mundo. Saber que não vai mais sentir sua presença, seu calor, sua voz, a saliva quente escorrendo pelo peito, pois precisa ir para um lugar em que você não vai estar. Dói saber que ela simplesmente se foi. Os sentimentos não morreram, vocês ainda se amam, mas agora existe uma barreira que os separa e é horrível. Foi isso o que aconteceu. Ainda nos falávamos pelo portable, mas não era a mesma coisa. Não mais ouvia sua voz animada falando da reprodução que tentou fazer de um quadro que viu num livro, da dublagem horrível do filme barato que acabamos de assistir, das sacras panquecas de banana que sua mãe fazia no petit-déjeuner. Os diálogos tornaram-se curtos, frios, desinteressantes. O sofrimento na sua voz era claro e ecoava por toda minh’alma, vazia.

   Numa noite sua mãe me liga, aflita, implorando para que fale com a garota, pois a situação piorou. Ela não come ou bebe qualquer coisa há dias, internada sobre uma maca. Faço o possível mas o silêncio do outro lado da linha é mortal, e sua mãe compreende a causa perdida, agradece, diz que entrará em contato no futuro quando houverem melhoras.
   Entrou em contato novamente, mas o que dizia era indiscernível pelo telefone, por entre os gritos de desespero e as súplicas por perdão. A ligação correu por toda a noite, mas era só um ruído vindo do aparelho sobre a mesa. Deitei no chão frio e observei o teto. Descobri naquela noite que não era branco como as paredes, mas sim bege, um tom claro de bege que inspirava suavidade e mansidão quando iluminado pela lâmpada amarela. 

06/15

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