no ponto de ônibus

    Sentada no ponto de ônibus esperando o meu chegar, veio um homem atravessando a rua em minha direção. Maltrapilho ele, malcheiroso também, trazendo consigo a nuvem do miasma alcoólico. Olhos fixos em mim, já previa o que iria acontecer.
   Dobrando-se a minha frente. "Olá, doutora, bom-dia. Perdão atrapalhar." E fez o mesmo com as duas outras pessoas sentadas ao lado, pedindo dinheiro a elas antes de se voltar a mim novamente e começar sua história.
   "Ô, doutora, desculpa interromper sua leitura, mas vou te falar a verdade, estou precisando de um dinheiro."
   "Que tipo de dinheiro, amigo?"
   "Olha, você sabe como carne tá cara, né? E assim, eu trabalho, eu ganho um dinheirinho cá e lá todo mês, mas lá em casa mal-mal tem ovo pra comer."
   "É verdade, tudo está caro no mercado."
   "Aí, doutora, você entende minha situação. Eu te peço, humildemente, que me dê um trocado qualquer pra ajudar com o dinheiro lá em casa. Se tiver, também, porque se não tiver eu entendo."
   Sempre propensa a ajudar o próximo com os vícios da carne, puxei da carteira as três moedas de real que eram o único dinheiro que levava comigo.
   "Aqui, amigo. Gaste como preferir."
   Com os olhos brilhando olhou para as moedas e de volta para mim. "Mas você tem certeza, doutora? Você não vai precisar pra pagar o ônibus? Não quero atrapalhar."
   "Fique tranquilo, eu tenho pra passagem."
   O brilho nos olhos se transformou em marejo, e as lágrimas foram debulhando de uma a uma. "Ô, doutora, vou te falar uma coisa. Hoje eu pedi, um trocado que fosse, pra mais de vinte. Eu pedi pra gente que eu sabia que tinha, gente vestida bonito, saindo do restaurante. Gente que não ia nem usar a moeda que tinha no bolso. Pedi pra mais de vinte, doutora, e eles olharam pra minha cara e disseram que não tinham", e ele fica de frente pra mim e põe um joelho no chão, pedindo minha mão; dou a mão direita pra beijar, e o faz. É um beijo molhado que cobre minha mão de saliva, e que é acompanhado de outro e mais um, e pousa a testa nas costas da mão murmurando um obrigado. "Doutora, muito obrigado, de verdade. Você que faz a diferença, doutora, enviada de Deus pra me ajudar. Eu tô muito feliz, doutora. Muito feliz."
   "Posso ver. Fico feliz que esteja feliz."
   Os olhos como perfurando os meus para tocar minh'alma, transmitindo um agradecimento sincero, me fazendo questionar minha própria visão de mim mesma. Deixou minha mão ir, mas toquei seu ombro. "Fique tranquilo, amigo. As coisas vão melhorar." E ele põe o outro joelho no chão e se curva para beijar meus sapatos sujos de lama. Encaro o movimento com certo desconforto, mas deixo que o faça e repita em cada pé. 

   "Doutora, acho que estou ficando cego, não consigo entender uma palavra desse livro no seu colo" Agora já sentado do meu lado. "Logo eu que lia tanto pros meus meninos quando eram pequenos."
   "É francês", digo rindo. "Tenho certeza de que sua visão ainda é perfeita."
   "Então deve ser sim" Ele ri também. "Lá na biblioteca eles não me deixaram mais pegar livros. Me expulsaram sem nem explicação. Tem pra mais de dez anos que não toco num livro."
   "É uma pena."
   "É mesmo doutora."
   E o assunto esfriou, tão rápido quanto a chama primeiramente foi acesa.
   "Doutora," diz tocando a ponta dos meus pés e as costas da minha mão direita com o cuidado que se tocaria a mais fina das porcelanas, “eu vou indo, mas muito obrigado, viu? Que deus abençoe seu dia.”
   Aceno de volta para ele que vai andando de costas para ainda me ter na vista, e o vejo entrar no barzinho duas esquinas mais a frente. A senhora que esperava pelo ônibus junto a mim diz baixinho: “Eu juro que se eu tivesse eu dava. Eu juro.”

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