cotidiano

[Essa versão está bastante datada (11/23) e permanece aqui somente para arquivo. O trabalho foi reescrito e virá de conjunto a um novo projeto.]

    Há uma semana venho tendo este mesmo sonho, em que acordo, tomo uma xícara de café e ando até esta certa rua. Por ela passei uma única vez em toda minha vida e fazê-lo não precedeu qualquer momento importante, mas posso descrever com exatidão todos os prédios, o estado do asfalto e os carros estacionados naquela manhã em que os experienciei há mais de uma década atrás. A silhueta dos exatos quatro transeuntes que passaram por mim poderia colocar agora no papel, e nos sonhos posso sentir seu cheiro tal como o fiz no passado. Em nenhum outro momento dentro desta década que passou, tal memória tão vívida me ocorreu, mas agora estou presa a ela como numa maldição.

   Neste momento é impossível discernir se estou sonhando ou acordada, pois o gosto do café amargo faz comprimir-me a língua, posso sentir o vento esfriando meu rosto e o suor dentro do agasalho. Quando finalmente acordo, minhas botas estão calçadas e descubro que deitava por cima dos cobertores, numa cama desfeita que não tem o meu cheiro, dentro do mesmo quarto que vi todas as manhãs outras milhares de vezes. O gosto azedo do café velho na boca me faz certa de que não é a primeira vez que acordei naquele dia, mas o despertador toca e me desengana.  lama nas minhas botas e sujo os corredores em direção a cozinha, onde minha xícara no armário está do jeito que a deixei na noite passada: limpa sobre o pires, com a alça virada para trás, meticulosamente seca como toda a louça da casa. A cafeteira também está seca; ligo e vejo o vapor subindo, iluminado pela luz gélida do céu nublado. O café tem gosto de cotidiano. Saio de casa e faço o mesmo percurso de sempre em direção ao restaurante de mamãe, mas me deparo com a rua, a rua dos sonhos. Os mesmos carros estacionados, os mesmos prédios, a mesma vida daquela manhã de dez anos atrás. Subo a rua sem saber porquê. Sou uma alma presa num corpo autômato que sobe a rua sem temer o que há no fim.

   De um momento para o outro estou novamente na cama. O cheiro do sabonete barato do banho de ontem à noite na minha pele, como o único perfume que visto, exalando das partes descobertas da minha roupa de caminhada. A cama que tinha arrumado ontem com os lençóis novos, desarrumada por um uso anterior de que não me recordo. A luz está prestes a surgir pelos buracos na cortina, e em cinco minutos o alarme vai me despertar para o dia que se apresenta. Não consigo me mover. Tento mas os músculos não respondem; a alma arfante e a respiração calma. O cheiro do sabonete, o gosto do café velho, a maciez dos lençóis limpos... tudo é estranho. Eu não sou eu. O alarme toca e o desligo, me levanto e sujo o chão com a lama fresca nas minhas botas. A alça da xícara virada para trás me ajuda a diferenciá-la das outras; coloco a água na cafeteira e vejo o vapor subir. O café tem gosto de cotidiano. Saio de casa e vou em direção ao restaurante de mamãe, mas me deparo com a rua, a rua dos sonhos. Os mesmos carros estacionados, os mesmos prédios, a mesma vida daquela manhã de dez anos atrás. Subo a rua sem saber porquê. Num ímpeto súbito arranco uma luva e a jogo para o lado. Não paro de andar e não pego a luva, e de um momento para o outro estou novamente sobre a cama. Há um invasor em casa, ouço passos, os ruídos de louça batendo em louça e a cafeteira fazendo o café. Estou assustada mas não consigo me mover. Ouço meus próprios gemidos saindo daquele corpo como a de um auto-falante. O despertador toca e o desligo com a mão nua, e o frio metal faz arrepiar os pelos da mão.

 Ouço o som das botas sujas fazendo pegadas de lama fresca na cerâmica branca. Ouço o som da louça batendo na louça, e o ruído alto da cafeteira que produz o vapor iluminado pela luz gélida vinda da janela. Sinto as lágrimas escorrendo incessantes pelo rosto. O calor da xícara queima minha mão descalça. Saio em direção ao restaurante de mamãe.

 

09/21

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