Untitled 01
Para Sofia, uma das minhas pessoas favoritas.
I
Ela caminha o mais rápido que pode. Não por ter pressa, mas pelo medo de a notarem. Não quer ser vista, mas Papai Noel nunca trouxe sua capa de invisibilidade. Sua única esperança é a velocidade, mas sempre num passo polido o suficiente para não a acharem louca. Ela caminha o mais rápido que pode mas não vê o fim, ainda está a mais de três quilômetros de seu objetivo e esse fato consome sua força de vontade numa cadência veloz, e o desejo de correr pela sua vida, agora já a dois blocos de sua casa, é indizível.
O coração bate rápido num tum-tum cada vez menos ritmado, os pulmões parecem pesar toneladas, e não importa o quão rápido aspire, o oxigênio nunca parece suficiente. Ela vira a esquina, cola as costas na parede e olha em volta. A claridão do dia faz doer os olhos e não consegue enxergar as casas, que se unem num só borrão branco como o paraíso. Ela teme que Deus a veja nesse estado. O suor escorre mas não sente calor, um frio percorre seu corpo. Ela se arrepende e não sabe de quê.
Os anjos cantam como vozes dentro de sua cabeça, e ela tem certeza da insanidade que chega, e mais ainda de que não deveria ter saído de casa. Suas pernas estão moles e ela se senta ali na calçada mesmo. Ninguém está por perto, mas ouve as pessoas que reclamam e reclamam, das mais diversas direções, nas mais diversas tonalidades; homens, mulheres, crianças; eles estão reclamando de sua presença, não a querem ali, sentando no chão como um punk, hiperventilando incontrolavelmente. Ela quer correr e espera o sinal que não vem, e as vozes clamam cada vez mais alto o seu nome, eles a querem pegar, mas suas pernas não se movem além da tremedeira cada vez mais intensa. Ela quer gritar mas não ousa fazê-lo. Pode sentir o hálito acre da voz que sussurra em seu ouvido, se vira e só vê a parede. Ela sente as mãos subindo por seu corpo. A multidão tem pedras na mão e se prepara para lançá-las. Há muito não pisca os olhos que ardem como um castigo. Ela olha para cima e só vê o manto monocromático do céu, branco como leite.
Ela olha para o céu branco de nuvens e névoa e mormaço do outono, e é como se visse a máxima imagem divina, descendo sobre ela para lançar a primeira pedra.
Ela olha para o céu e vê o próprio coração, pulsando.
Um barulho de passos, alguém vira a esquina. Toda a cena some, e se vê uma moça arfando e babando como um cão, e a senhora assustada procura, com imensa estranhez, o sentido daquilo tudo e balbucia: “Está tudo bem?”
Ela se levanta num pulo. Começa a fugir, tropeça, levanta e vai a toda velocidade numa meia-volta para sua casa. Ela chora lágrimas sobre lágrimas, a palma da mão direita vermelha da queda no asfalto. Ela espia novamente o céu de leite e solta um pequeno guincho ao ver lá no alto o rosto da “senhora-deidade” que se deparou com ela há pouco. Volta o olhar para frente, mas a visão embaçada pelas lágrimas atrapalha sua noção de espaço e tropeça e cai de novo na calçada. A segunda queda e o medo do que ainda pode encontrar na rua deserta arrancam-lhe a força dos membros. Levanta com dificuldade e cambaleia virando a esquina de sua rua.
Cada passo a faz acreditar mais e mais em seu corpo gigante e multicor, pesado como um elefante, chamando atenção até da formiga que se camufla no cenário por sua pequenez. Sua casa está mais perto, mas ainda parece longe. Um carro passa na rua e ela jura que buzinou, como uma maneira sarcástica de rir de sua situação. A chave gira depois do esforço de encaixá-la com as mãos trêmulas. Ela olha pelas janelas para dentro, tentando ter certeza de que ninguém está à vista, e entra.
II
O dia escurecia mais cedo dentro da casa. As janelas de vidro marrom davam àquela paisagem à meia-luz um clima extraordinariamente religioso. A mãe apaixonada por vidraria tinha o desejo de colocar grandes janelas arredondadas com figuras de anjos e frutas do Éden em todos os quartos, mas o pai disse não, e para não fazê-la triste deixou escolher cores para as janelas comuns da casa, e ela aproveitou a deixa para torná-la um pouquinho mais velha e estranha. Reposicionou todas de modo que sempre que o sol brilhasse, a casa parecesse a igreja de um templo cristão, e à noite os vitrôs azuis descobertos e abajures de luz fraca tornavam o espaço numa atração de parque-de-diversão, mas os três membros da família gostavam daquilo ou não davam interesse, e assim ficou a casa, um lar de artistas, fantasmas e demônios, como aquele que se esgueirava pela sala-de-estar com medo de ouvir passos, na ponta dos pés em direção ao quarto dos fundos.
Aterrissou segura em sua cama, procurou o ursinho de que cuidava desde a infância, e uma sensação de alívio percorreu seu corpo quando tocou a macia pelúcia do melhor amigo embaixo da cama. Não tardou a abraçá-lo o mais forte que podia, sempre cuidando para não abrir mais o rasgo no braço esquerdo que nunca aprendeu a suturar. Quando sentiu que todo aquele medo tinha passado, levantou e abriu a pesada janela de madeira escura. Encontrou apenas o céu, o mesmo que tinha visto mais cedo, coberto de nuvens brancas como fossem de algodão.
Jogou a mochila num canto e se despiu. Olhou para a moldura do grande espelho que tinha ganhado no aniversário de cinco anos, agora quebrado, os cacos ainda no chão tão empoeirados quanto o velho carpete. Naquele momento de sanidade ficou triste de não poder ver a si mesma. À sua volta todos os objetos estavam rodeados por uma aura de abandono; o quadro que pintou com as tintas do pai, os livros escritos pela mãe e as coleções herdadas do avô, os puxadores da cômoda, a cabeceira da cama, o cesto vazio de roupas sujas, todos marrons de poeira. Sentou em frente a escrivaninha e colocou os pincéis duros na água. Abriu um pote de tinta preta e desenhou um coração na coxa com os dedos, e um sorriso surgiu e se foi como um raio.
O relógio Hermès no pulso tiquetaqueava alto, viu que eram quase 18:00h, o show começaria em poucos minutos. Arrastou a cadeira para perto da janela, e observou o poste de luz um pouco mais alto que o muro que cercava a casa. Quando a lâmpada acende é sinal de que o dia chegava a seu ápice, e lentamente o céu se tornava azul, as nuvens se dispersavam, as estrelas invisíveis surgiam, e melhor ainda, os insetos voadores faziam sua visita diária à adorável iluminação urbana. Eram mais de uma dúzia de pernilongos, circulando como pequenas faíscas numa jornada interminável de translação. A alegria dos bichinhos a deixava fascinada, e todos os dias assistia a dança.
Quando cansou, olhou para a quase-escuridão a suas costas. A única iluminação era o poste da rua pois todas as lâmpadas queimaram, e formavam-se diversas sombras no quarto à meia-luz. Levantou-se e se escondeu na escuridão entre a cômoda e a escrivaninha, queria que um ladrão aparecesse para assustá-lo e esperou, mas ninguém veio, então se arrastou pelo chão sujo para debaixo da cama, agarrou o ursinho e esperou mais um pouco, talvez desse a sorte de apanhar um dos insetos que viviam ali, mas o único sinal de vida era o rastro que deixou no carpete. Teve uma ideia, jogou o urso como uma isca, e esperou a bruxa que certamente desejava tê-lo para a sopa. A bruxa também não apareceu e ela se cansou de esperar.
Depois de um tempo a barriga roncava, amarrou o cobertor pequenino que mal a cobria à noite no pescoço, e colou o ouvido à porta para tentar ouvir passos. A casa estava tão silenciosa como sempre esteve. Abriu a porta lentamente, o que só fez o ranger durar ainda mais, e se arrastou pela escuridão do corredor em direção a cozinha. Podia ouvir o som da televisão à dois quartos de distância, mas sabia que estaria segura mesmo se fizesse tanto barulho quanto um rato. Abriu a geladeira e comeu as três fatias de pizza velha que encontrou, colocou a boca na torneira e entornou quanta água seu estômago pôde aguentar, depois rastejou de volta ao quarto, satisfeita em seu desconforto.
Fechou as janelas e se concentrou nos feixes de luz que ainda passavam por ela, sentada escondida deles encima da cama, o urso no seu colo. No breu viu a face familiar do demônio que a atormentava e ficou feliz; seu rosnado, seu cheiro, sua saliva pingando incandescente e sua pele brilhante, ela adorava tudo nele. Queria que pudessem conversar sobre seu dia no inferno, mas ele só sabia a observar com olhos famintos, sem mover um dedo, como uma gárgula terrível. Ela olhava de volta para ele, sabia que um dia seriam amigos, mas tinham de superar os feixes de luz que os separavam e só desapareciam horas depois de ter ido embora. Ouviu passos do lado de fora, das botas que sua mãe nunca tirava. Ela bateu na porta três vezes e sussurrou numa voz doce “Trouxe o jantar para você, querida”, deixou o prato no chão com um ruído e saiu.
Aquela voz a deixou profundamente assustada, por mais que a ouvisse todos os dias. Deitou a cabeça no travesseiro, cobriu o torso com o cobertor e sonhou com a comida do outro lado da porta.
III
As gotas de chuva caíam do lado de fora como pedras de gelo. Anjos metralhando o teto da casa com suas lágrimas. Sentada na cadeira em frente a janela ela chorava pois hoje não haveria dança, por mais que a lâmpada do poste estivesse acesa há mais de uma hora. Ela chorava como se seu avô tivesse morrido uma segunda vez, chorava como se sua mãe não tivesse dado o boa noite naquele dia, como se o braço do seu urso se soltasse finalmente. Ela chorava como nunca antes e tinha medo de inundar o quarto com suas lágrimas. Não conseguia parar e não sabia o motivo, e da sua boca uma voz rouca por falta de uso se misturava ao barulho da chuva, numa sinfonia desesperadora para a mãe que chegara em silêncio à porta do quarto. Havia se sentado ali e ouvia a filha chorar e gemer numa língua ininteligível, e seu coração doía como se tomasse facadas. Há quase meia-hora esteve sentada ali esperando que ela se acalmasse, mas os gemidos eram cada vez mais altos e foi sua vez de começar a chorar. Chorava por ter perdido as esperanças, e chorava por não se lembrar mais do rosto da filha; chorava por temer o sofrimento que vinha do outro lado da porta, e a chuva não parava. Chovia desde cedo, e a noite chegara e a água corria a ladeira do lado de fora como um rio, e caia da calha como de uma nascente. Era o dilúvio, bastava esperar mais 39 dias e tudo aquilo estaria acabado, e não precisaria se preocupar com a vida de horror que sua filha proporcionava à família. Queria morrer, pois nada no mundo a dava conforto perante a vida que era forçada a viver todos os dias, e as responsabilidades da vida adulta pesavam como uma montanha em suas costas. Ela tinha certeza de que a própria filha não sabia que o pai estava internado no hospital à beira da morte. Ela sabia que se fugisse era só uma questão de tempo até que a menina morresse também; ela se desesperava ante a consideração da possibilidade, seu natural desejo de conforto. Ela chorava e tentava não fazer barulho, ali, daquele lado da porta, apesar de a chuva consumir toda a casa com seus ruídos. Chovia e as duas choravam.
A luz do abajur brilhava no fim do corredor. A tempestade se abrandou, tal o choro da menina no quarto. A mãe bateu na porta três vezes.
Bateu a primeira. “Querida, você está aí?” Não ouve resposta.
Bateu a segunda e colou o ouvido à porta. Nada além da chuva podia ser ouvido.
Bateu a terceira. “Chegou uma carta para você.” Deslizou metade do envelope por baixo da porta e esperou. Um baque seco foi ouvido como se algo tivesse caído lá dentro.
A queda tinha machucado seus joelhos, mas se arrastou mesmo assim até a porta. Puxou o envelope para si com os olhos cheios d’água, e deu um murro na parede com toda a sua força. O barulho fez a mãe se afastar. Ela enxugou as lágrimas com as costas da mão e conseguiu ler seu nome no papel. A mão esquerda foi de instinto em direção a boca, estava surpresa, todo o seu corpo tremia de ansiedade enquanto lentamente virava a carta para ler o remetente.
Era ele. O único amigo de verdade que algum dia teve. Uma confusão de sentimentos a atingiu quando lembrou de seu rosto, de seu cheiro, da forma como lia os clássicos para ela, sempre dando uma voz diferente para cada personagem. Ela se lembrava de quando ele a fazia sorrir com seu sorriso, de como estar a seu lado era reconfortante mesmo depois que seu avô morreu; de como ele ria quando ela tentava explicar suas pinturas. Mas um dia ele simplesmente sumiu, disse que tinha de se mudar e foi sem a levar junto. Seu coração saltava pela boca e podia sentir o gosto do vômito na garganta. A visão ficava turva e sentia um choque pelo seu corpo inteiro, e num súbito movimento rasgou a carta ao meio.
Era nada além do envelope e uma folha, mas de dentro escorregou um botão.
Era um pequenino botão preto brilhante com quatro furos.
Ela observou o botão por um tempo, com estranheza. Hesitante o tocou e puxou a mão rapidamente, como se estivesse em brasa, depois conseguiu pegá-lo num movimento rápido e o fechou na mão, e apertando forte tentou transformá-lo num cristal. Abriu a mão e ainda era o mesmo botão, refletindo a luz alaranjada do poste lá fora. Ela olha em volta e não vê nada. Olha para dentro de si e não vê nada. Olha para a mão e vê o botão seguro na palma branca e suja.
As lágrimas haviam acabado, ela passou a mão no joelho direito com um hematoma e seguiu para a cama, nua e com frio, a chuva ainda lá fora, o vento trazendo alguns pingos para dentro pela janela aberta. Ela estava em silêncio e conseguiu ouvir os passos da mãe que levantara e saía pelo corredor. Não se deu ao trabalho de pegar o urso debaixo da cama, e abraçou o cobertor.
IV
Foi uma noite sem sonhos.
Acordou fungando e tremendo. A luz do poste continuava acesa e a chuva parara, o sol não tinha nascido ainda. Levantou, pegou umas peças de roupa e uma toalha e partiu para o banheiro.
Pelo espelho da pia se viu e tomou um susto. Estava tão mais alta do que se lembrava, pálida, os olhos ainda um pouco inchados, o cabelo desgrenhado e os lábios secos e machucados. Não olhou por muito tempo por ter pena de si mesma. Entrou debaixo do chuveiro quente e era como um banho de leite, sentia a pele velha escorrendo com a sujeira. Quando saiu parecia outra pessoa, se secou com a toalha e penteou os cabelos. Pegou a escova de dentes seca e dura e os escovou. Vestiu as roupas, pendurou a toalha e foi para a cozinha fazer o petit-déjeuner: ovos mexidos e café-com-leite. Sentou no sofá da sala para assistir televisão, mas não quis ligá-la. A tela como um espelho negro refletindo as imagens que se via com a pouca luz era entretenimento o suficiente, e podia ver com dificuldade o seu sorriso, mas estava lá.
A mãe acordou de seu sono leve com os barulhos na casa pequena. Tinha medo do que poderia ser, mas sabia o que estava acontecendo. Sentiu no seu coração que estava tudo bem, e a curiosidade a fez levantar da cama e ver com os próprios olhos. Caminhou temerosa pelo corredor escuro, e se deparou com a filha sob a luzinha pálida do teto da cozinha, colocando uma segunda dose de café na caneca. As duas se olharam por um tempo indecisas sobre o que fazer, até a mãe atravessar o balcão e apertar a filha num abraço forte e caloroso, que a abraçou de volta, e permaneceram assim num momento que pareceu não ter fim, chorando a saudade que se dissipava. Ela não sabia o quanto amava a mãe até aquele momento, quando sentiu o característico cheiro da loção de maçã, presente em tantas memórias da infância, e a mãe mal acreditava naquele ser que cresceu escondido, agora quase do seu tamanho, mas magra e frágil como fosse de papel. Ela se afastou e pôs as mãos no rosto da filha e beijou cada centímetro, o nariz, os olhos, as têmporas, e a menina soltava risadinhas sentindo cócegas, e a mãe se deleitava com aquele som e queria que nunca acabasse. Olhou a filha nos olhos e disse o quanto a amava. Ela não conseguia segurar as lágrimas que debulhavam e eram beijadas uma a uma. A garota caiu de joelhos abraçando as pernas da mãe, clamando por perdão, e ela perdoava, afagando os cabelos úmidos da pequena.
***
No escritório da mãe ela escreve a carta de resposta. As palavras vêm naturalmente e linhas se transformam em parágrafos que se transformam em páginas. Está ali a manhã inteira, escrevendo sem parar, contando uma história que perdeu o sentido há muito, mas de enredo e moral claros na mente da autora. Não coube tudo num envelope só, e divide em três envelopes prestes a explodir sob a pressão das folhas dobradas três vezes. Com todo o cuidado cola as cartas fechadas, e adereça todas com pequenas flores cujas pétalas voam com o vento imaginário.
Sua mãe precisou sair para uma reunião de trabalho e estava sozinha na casa. Não tinha ideia de onde seu pai se encontrava. Colocou as cartas na mochila e se preparou para visitar a agência de correios.
Do jardim frontal abandonado viu o céu branco e adorável, sentiu o calor do mormaço e quase voltou para trocar as roupas escuras e pesadas que vestia, mas decidiu que era melhor deixá-las para não se expor aos olhares dos transeuntes, de que só a ideia de encontrar a fazia hesitar ali em pé no portão. Olhou para os dois lados da rua e viu nada além do asfalto e o adorável poste cobiçado por todos os mosquitos da região. Segundo o mapa a agência ficava a alguns quilômetros de distância, mas era um bom exercício para alguém sedentário como ela.
A rua estava deserta mas ela não levantava a cabeça para ter certeza. Os carros eram ruídos ao longe, mas podia jurar que um bando de cachorros estava a esperando na esquina com seus latidos assustadores. Ela caminhava cada vez mais rápido, com medo dos corredores de maratona atrás dela a ultrapassarem. Agora estava longe de casa, porém mais longe parecia seu objetivo, e se desesperava. Os repórteres chegaram para noticiar o evento estranho de sua saída, e ela caminha o mais rápido que pode.
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