O Gaiteiro
[Essa versão está bastante datada (11/23) e permanece aqui somente para arquivo. O trabalho foi reescrito e virá de conjunto a um novo projeto.]
Acabava de sair da casa de um amigo tarde da noite, pois não queria que fosse embora antes da chuva passar. Falamos nossos adeus e me observou descer a rua me guardando com o olhar. Chegando na esquina tinha duas opções: ir para casa explicar meu desaparecimento, ou vadiar pelas ruas escuras e molhadas da cidade. Decidi aumentar a preocupação de mamãe que certamente esperava acordada, e fui caminhar para ainda mais longe do lar.
Sempre adorei os bairros de classe média alta, cheios de casas largas com flores, decorações em cerâmica e pintura da cor mais destacável possível em cada uma. Sempre tinha asfalto e calçadas rachadas e campainhas para tocar e correr. O comércio local se dividindo entre bares para os mais pobres, outros para os mais ricos, floriculturas e lanchonetes das mais diversas. A salgateria do tio D. vendia as melhores coxinhas da região, e umas ruas acima havia um spa onde me maquiaram uma vez. Mas por mais que este local traga lembranças divertidas, são também cansativas, e resolvi descer para a avenida.
Os carros passavam num fluxo incessante, e desisti de tentar atravessar depois de alguns minutos na faixa de pedestres, e caminhei daquele lado mesmo, olhando as concessionárias todas e os restaurantes meia boca. Os carros aceleravam cortando o vento e jogando água para todos os lados; o asfalto estava lindo, preto como a noite, brilhando à luz dos postes, e a iluminação noturna dos estabelecimentos fazia tudo parecer vivo; a beleza urbana das cidades modernas, sinal de gente e progresso.
Minha mão coçava para escrever uma carta que fiquei ruminando o dia inteiro, e resolvi procurar um lugar para sentar. Atravessei a avenida correndo e quase fui atropelada, e desci qualquer rua adentrando um bairro popular de classe média baixa. A diferença de cenário se notava pelos barzinhos em cada esquina, as árvores mal-cuidadas e as casas pequenas e apertadas sempre brancas ou azul-claras, com sinais de infiltração em todas as paredes. A falta de cobertura do lado de fora deixava molhada toda a extensão da calçada, mas não demorou até achar um prédio de apartamentos pequeno e velho com a calçada seca.
Sentei ali perto do lixo não recolhido, minha vontade de escrever fazendo ignorar o mau-cheiro. Escrevi e escrevi, e minhas pernas e quadril doíam, mas aquela carta seria um sucesso na certa e não parei. Dentro em pouco ouvi uma música estranha ao longe, que se aproximava. Não sabia o que causava, mas era surpreendentemente agradável, solitária e soturna. Então vi o bardo virando a esquina, veio sentar do meu lado sem parar de tocar a gaita. Sorri para ele e fechou os olhos em retribuição, a música diminuía em fechamento, e pude novamente provar o silêncio. Sentamos quietos, aproveitando a presença um do outro e aquele ponto seco sob a garoa que caía levemente.
“Algum dia compro uma harpa”, falou. “Algum dia compro uma tulipa francesa”, respondi. Apertamos as mãos e fui caminhando para casa, cantarolando qualquer coisa.
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